Entrevista: "Não haverá legado sem engajamento social"
Para Krenak, Amazônia não pode ser cenário para show de líderes

Por André Furtado | Foto: Alexandre de Moraes
Ambientalista, líder indígena, filósofo, escritor, poeta, imortal da Academia Brasileira de Letras. O currículo é extenso e a luta incansável! Quando encontrei Ailton Alves Lacerda Krenak, ele vestia camisa bege e calça branca. Na recepção do hotel, ele cumprimentou a nossa equipe e, então, nos dirigimos ao local em que a entrevista seria realizada. Do início ao fim do nosso encontro, percebi que sua simplicidade é o que o faz ser quem é: um imortal! Nesta conversa exclusiva para o Beira do Rio, ele não apenas respondeu às nossas perguntas, mas também nos deu uma aula com inúmeras reflexões – algumas das quais levaremos para a vida e, por isso, fazemos questão de compartilhá-las com você.
Pluralidade no ensino superior
A ideia de uma universidade plural, aberta para a demanda da sociedade, foi o que distinguiu a Universidade Federal do Pará das outras que estão localizadas na Amazônia. Nenhuma delas tem uma política de acolhimento e inclusão feita com estratégia de crescer com a população. Uma coisa é uma universidade que tem como prioridade a eficiência, outra é a universidade comprometida socialmente. A excelência da UFPA já é reconhecida. A questão é que algumas pessoas gostariam que, além de sua característica social, ela também fosse capaz de dar conta do desafio de produzir respostas científicas e tecnológicas para os problemas da Amazônia.
Clima e Amazônia
Esta região é central na fronteira de expansão do capitalismo, que está avançando sobre locais como a Ilha do Marajó, que, sabidamente, é um ecossistema muito sensível e que, se pisar duro, a resposta também vai ser dura. Quando a natureza decidir afundar aqueles empreendimentos que estão sendo instalados lá, não vai ter banco que socorra! Fazer aventura nesse ecossistema de floresta úmida é uma insanidade. Ora, se a floresta perde a sua capacidade de produzir vida em abundância, os povos daqui vão cair no abandono. Uma universidade deveria assumir a vanguarda da discussão sobre biotecnologia e não apenas sobre o potencial econômico de recursos advindos da floresta. A UFPA deve questionar este lema da sustentabilidade: é possível ficar aqui, separado do mundo, e ser sustentável ou a sustentabilidade é um pacote que vem de fora para se implantar? A sustentabilidade do ecossistema amazônico deve ser pensada com base naquilo que temos aqui, não pode ser baseada no que é copiado ou extraído de fora.
Avanço tecnológico
Você pode ter uma sociedade muito eficiente produzindo pesquisa, e outra que não consegue acompanhar o avanço das tecnologias. Hoje, por exemplo, vemos alguns centros tecnológicos usando drones e robôs para substituir tarefas humanas. Mas há uma fantasia nesta ideia de que, daqui a pouco, nenhum de nós terá utilidade. Esse progresso tecnológico é escandaloso em um mundo tão desigual, no qual 750 milhões de pessoas vivem na condição de refugiados.
Educação
Historicamente, isso que chamamos de educação foi confinado no campo de interesses econômicos, aquilo que o mestre Paulo Freire chama de educação bancária. As pessoas só têm acesso às Instituições de Ensino Superior para serem preparadas para o mercado de trabalho, elas não são preparadas para a vida. É como se estivéssemos produzindo, antes da robotização, uma espécie de escravo de elite. Imagina que triste você pegar uma pessoa, formá-la e, aos 20 e poucos anos, colocá-la trabalhando, o resto da vida, para ganhar dinheiro. Isso não é vi ver! O horizonte da vida não pode se resumir a uma carreira profissional, por mais brilhante que seja.
As corporações estão comendo a floresta, a montanha e o rio. É como se es tivéssemos passando por uma espécie de desvio do conhecimento. Nós estamos abandonando o que importa e correndo atrás de uma miragem. O que é isso que eles chamam de futuro? É a ideia de progresso. Deveríamos questionar essa ideia, pois, na verdade, ela nos promete algo que não vai entregar.
Nós deveríamos mudar a nossa cultura sobre o tempo. A principal delas é “tempo é dinheiro”. Isso é mentira! O capitalismo quer transformar o tempo em dinheiro e a nossa vida em uma espécie de luto: corremos atrás do dinheiro para ter tempo e atrás do tempo para ter mais dinheiro. A Organização Mundial da Saúde diz que o diagnóstico mais crescente globalmente, hoje, é o sofrimento mental. As pessoas colapsam e adoecem, principalmente nas metrópoles.
Juventude
Hoje, a juventude chega à universidade e dá de cara com um abismo cognitivo. Quem está na faixa entre 15 e 30 anos não foi preparado para isso, mas terá que responder como será o futuro. No meu livro Futuro Ancestral, digo que, se existe algo para acontecer, não vai ser no futuro prospectivo, será informado pela ancestralidade, pelo que já tivemos. Quando a gente pensa no bioma Amazônia, nossa extremidade é a floresta. Não é entreposto de transação comercial, não é aeroporto, não é porto, não é metrópole imitando o Sudeste. A ancestralidade aqui é a biodiversidade. Ela é a base mais anterior e mais rica que esta região contém e é por isso, inclusive, que estão tão interessados nela e em fazer aqui a Conferência do Clima, a COP 30.
Legado da COP 30
Eu espero que não tenhamos uma res saca e que, pelo menos, os investimentos sociais melhorem infraestruturas como a do transporte. Se tiver um equipamento beneficiário de uma tecnologia limpa, já será um legado positivo da COP 30. Parece que essas conferências, nos países onde ocorreram, deixaram poucos benefícios.
Acho que o primeiro compromisso que os governos estadual e federal deveriam assumir seria com a educação, oferecer a possibilidade de uma experiência educativa, que não formasse os alunos para o mercado de trabalho, mas para que eles pudessem aguentar as mudanças climáticas onde vivem. O legado deveria ser bem simplório, pois não será salvar o planeta, obviamente.
Amazônidas
A sociedade civil deve se antecipar com propostas e com a criação de um observatório da agenda da conferência e monitorar como essa agenda se relaciona com as demandas das comunidades, tanto urbanas quanto da floresta. Nas discussões, [as lideranças] devem ter comprometimento. Se vai haver substituição do combustível fóssil por outras fontes de energia, é preciso dizer quais, quando e como.
Para ter materialidade, a sociedade civil precisa fazer alguma coisa, não pode ser uma legenda. Tem que se mobilizar e exigir a implementação de, pelo me nos, algumas dessas linhas de reparação e compensação das perdas que essas comunidades tiveram antes da COP 30. Para mim, isso é o mínimo para que a região não sirva de cenário para os líderes fazerem um espetáculo e irem embora.
Ciência contracolonial
É considerar, por exemplo, que uma resposta tecnológica não é igual para o deserto e para a floresta. Esta ideia de que a tecnologia é uma mágica que resolverá tudo em qualquer lugar do mundo é uma bobagem e deve ser questionada. Isso daria, inclusive, legitimidade para as universidades regionais voltarem suas pesquisas para o interesse da população, em vez de ficarem acenando por reconhecimento de publicações estrangeiras.
Nós temos que ser capazes de alcançar uma propositura apoiada no conhecimento ancestral associado à biodiversidade. O conhecimento ancestral é o conhecimento tradicional associado a recursos genéticos, que, inclusive, é um tema dos direitos internacionais. Se a gente dissociar um do outro, a tecnologia não vale para nada.
Esse é o tipo de conhecimento que as universidades devem priorizar. As universidades não têm obrigação nenhuma de agradar a governos nem a instituições financeiras. Sem independência, elas não serão capazes de antecipar os cenários negativos que podem nos prejudicar.
Academia Brasileira de Letras
Ser o primeiro indígena na Academia Brasileira de Letras pode significar mudanças interessantes. A primeira delas é que pessoas indígenas podem ter reconhecimento nacional e internacional como pensadoras, autoras, escritoras e intelectuais. Essa novidade reivindica lugar não só na Academia Brasileira de Letras, mas também nos espaços da representação da arte e do conhecimento.
A contribuição que o pensamento dos povos originários leva para esses ambientes é muito maior do que a possível vantagem que nós podemos ter. Quando eu entrei na Academia Brasileira de Letras, eu disse para eles: “Vocês têm a missão de difundir a língua portuguesa. Os países de língua portuguesa são a missão de vocês. A nossa é trazer 305 línguas para cá. Porque aqui não é Portugal, aqui é o Brasil, é a Academia Brasileira de Letras. Então, as letras brasileiras são 305”. A minha cadeira se transformou em uma plataforma digital com toda tecnologia de informação para que as pessoas possam acessar essa diversidade linguística.
Beira do Rio edição 174 - Março, Abril e Maio
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