Ir direto para menu de acessibilidade.

GTranslate

Portuguese English Spanish

Opções de acessibilidade

Início do conteúdo da página

Resenha

Escrito por Rosyane Rodrigues | Publicado: Sexta, 22 de Dezembro de 2023, 20h03 | Última atualização em Sexta, 29 de Dezembro de 2023, 15h42 | Acessos: 295

Traços e troças – mais que um livro

#ParaTodosVerem: Fotografia mostra, ao fundo, várias estantes com livros. Em primeiro plano a imagem da capa do livro “Traços e Troças”, de Vicente Salles.
#ParaTodosVerem: Fotografia mostra, ao fundo, várias estantes com livros. Em primeiro plano a imagem da capa do livro “Traços e Troças”, de Vicente Salles.

Paulo Maués Corrêa Foto Nícia Salimos (ed.ufpa)

A Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes de 2023, ocorrida em Belém do Pará, foi marcada pela retomada, em definitivo, das atividades culturais no estado, depois de termos passado por um verdadeiro pandemônio que paralisou vários setores.

 Outra marca desse evento é que ele também foi palco de lançamentos históricos, sendo um dos mais festejados o Traços e Troças: o desenho de crítica e de humor no Pará, de Vicente Salles, no estande da ed.ufpa, contando com a presença da viúva do autor, Marena Salles, que autografou os livros.

Vicente Salles, nascido em 27 de novembro de 1931, no município paraense de Igarapé-Açu, e falecido em 7 de março de 2013, no Rio de Janeiro, é um dos maiores intelectuais da Amazônia, com estudos nos mais variados campos, como literatura, cordel, folclore, história, música, dança, teatro, além de também ter suas incursões como poeta e ficcionista, sendo um verdadeiro polígrafo, para usar a expressão de Marena e Jonas Arraes.

E Traços e Troças é um estudo entrecortado por diversos dessas áreas, em volume preparado com esmero pela ed.ufpa, sendo justamente a qualidade da edição o que salta, de imediato, aos olhos de quem tiver o livro em mãos: para ornar um estudo sobre arte, um volume de mais de 200 páginas, que, por si, já é uma verdadeira obra de arte, é algo mais do que pertinente.

Outros atrativos imediatos do livro: texto introdutório da coordenadora da edição, Simone Neno, explicando o percurso do trabalho, de microedição (encadernação artesanal que Vicente Salles costumava fazer de seus estudos e distribuía para algumas bibliotecas e pessoas amigas) a livro, caminho que levou mais de uma década; prefácio de Maria Regina Maneschy Faria Sampaio, que destaca a intenção do autor quanto a colocar na história da caricatura e da charge a significativa produção efetivada no Pará, pois, acrescento, embora o Grão-Pará tenha aderido à independência do Brasil em 1823, continuamos, na prática, apartados, em vários aspectos, do resto do país; e vasta documentação em forma de imagens, material raro coletado pelo autor ao longo de décadas de pesquisa e devidamente tratado para a apresentação a leitores e leitoras, que poderão se deleitar com esses tesouros da nossa história cultural – um adendo luxuoso é o acréscimo, na seção Apêndices, de outras imagens raras que, embora referidas pelo autor e constantes de seu acervo no Museu da Universidade Federal do Pará, não haviam sido inseridas no corpo do texto original entregue à ed.ufpa.

Um marco desse trabalho é disponibilizar ao público informações a respeito de relevantes nomes do desenho de humor no Pará, por exemplo, um alemão aqui radicado na segunda metade do século XIX, Carlos Wiegandt, considerado como o pioneiro da caricatura no Pará. Para se ter uma ideia da relevância do estudo de Salles para a reconstrução dessa importante história, Carlos Rocque, cuja meticulosidade é notória, sequer tem um verbete para o artista alemão em sua Grande Enciclopédia da Amazônia, que está recheada de nomes estrangeiros, como David Osipovitch Widhopff, artista russo que se fixou no Pará e atuou como professor de Desenho, além de estampar as páginas de periódicos como Zig-Zag e O Mosquito. Sua relevância é reconhecida por Salles, que lhe dedica também um capítulo de seu livro, e por Rocque, que desconhece, porém, Wiegandt.

Portanto, embora Wiegandt tenha sido tema de um capítulo de outro livro de Vicente Salles, Marxismo, Socialismo e os Militantes Excluídos (Belém: Paka-Tatu, 2001), Traços e Troças coloca, em definitivo, o artista em seu merecido lugar de pioneiro, assim como faz o devido reconhecimento a outros tantos nomes de peso na história dessa arte que, para muitos, pode ser considerada menor, mas foi praticada por artistas do porte de Crispim do Amaral, que trabalhou na decoração do Theatro da Paz, e de seu irmão Manuel, responsáveis por imagens antológicas publicadas em A Semana Ilustrada. Essa dupla divide o palco com outros tantos artistas que desfilam nas páginas de Traços e Troças.

O conjunto desse material que Salles começou a compilar no início da década de 1950 ilustra o quanto a caricatura pode ser uma importante fonte para a análise política (palpável no conjunto de imagens que retratam políticos e acontecimentos a eles relacionados) e de costumes (alusão ao Círio de Nazaré, por exemplo), o que nos leva a concordar com a contundente afirmativa de Salles, segundo a qual “Caricatura é coisa séria”.

Portanto a caricatura é uma forma de documentar a vida social e política, o que foi feito pelos artistas relacionados por Salles, entre os quais, também se destaca João Afonso do Nascimento, é Joafnas, sendo, inclusive, autor de um “livro delicioso sobre os costumes e modas”, Três séculos de moda, por ele mesmo ilustrado e preparado por ocasião do tricentenário de Belém, em 1916, mas somente publicado em 1923.

O desenvolvimento dos capítulos de Traços e Troças denuncia os desafios técnicos enfrentados para que o caricare se estabelecesse no Pará, e os trabalhos que ilustram as análises de Salles demonstram os avanços no processo de produção dos periódicos estampados pelos artistas, com imagens que eram, inicialmente, monocromáticas, até chegar ao colorido que o autor determina como característico do período da Belle Époque.

Num olhar mais amplo sobre a obra, percebe-se uma singularidade: ela começa com um estrangeiro que se fixou no Pará, Wiegandt, e termina com um grande artista paraense que, devido à decadência que se abateu sobre o estado depois da catástrofe da borracha na Amazônia, bateu asas para fora, Theodoro Braga, e muita gente não tinha a informação de que ele também foi atuante na produção de desenhos de humor, sendo que a pesquisa de Vicente Salles mapeia também essa faceta menos conhecida do artista.

Após esse período de decadência econômica e de revoada dos artistas do Pará, muito foi feito no campo do desenho de humor, mas Traços e Troças não conta a continuidade dessa história, sendo o livro um convite para que outros estudiosos deem continuidade à pesquisa, pois, como é evidente em praticamente todos os livros de Vicente Salles, ele deixou muitas pontas para serem puxadas por quem veio depois dele.

Pela qualidade da edição, do texto e da pesquisa, Traços e Troças é mais um livro de Vicente Salles que passa a ser referência em se tratando de Pará, de Amazônia e de Brasil, com que a ed.ufpa nos presenteou.

Serviço Traços e Troças: o desenho de crítica e de humor no Pará. Vicente Salles. Editora da Universidade Federal do Pará, 2023. Número de páginas: 216.

Onde encontrar: Em Belém, na Livraria da ed.ufpa, no campus da Universidade Federal do Pará, em Belém; na Livraria Leitura, na Livraria Travessia e na Livraria Paka-tatu. Em todo o Brasil, em livrarias parceiras e no site vendasonline.editora.ufpa.br (inclusive no interior do estado do Pará).

Beira do Rio edição 169

 

Fim do conteúdo da página