A realidade por trás das entregas por aplicativo
Pesquisa revela os impactos da síndrome de burnout em entregadores ciclistas de Belém

Por Evelyn Ludovina | Ilustração: Freepik
Imagine a cena: é quarta-feira, o dia foi puxado. Você chega em casa cansado, talvez depois de mais de uma hora no trânsito ou de um expediente intenso. Abre a geladeira e não tem nada pronto. Lá fora, a chuva engrossa. Você se acomoda no sofá, abre o aplicativo de entrega e pede algo para comer. Uma pizza, talvez! Em poucos minutos, o celular vibra: seu pedido está a caminho.
Mas poucas vezes percebemos o que está por trás dessa comodidade. Do outro lado da tela, está alguém que enfrenta o trânsito debaixo de sol e chuva. De bicicleta, percorre quilômetros pelas ruas da cidade, assumindo, sozinho, todos os custos do próprio trabalho. Sem garantias, sem direitos trabalhistas, sem saber quanto vai ganhar no fim do mês. O cansaço físico e emocional é constante.
Foi para investigar esse cenário que surgiu a pesquisa Prevalência da síndrome de burnout entre entregadores ciclistas de aplicativo, produto da dissertação feita por Ayara Letícia Bentes da Silva, sob orientação de Camila Carvalho Ramos, no Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGAD/ICSA). O estudo investigou as variáveis socioprofissionais associadas ao risco de desenvolvimento da síndrome de burnout entre entregadores por aplicativo em Belém (PA), uma categoria pouco visibilizada.
Apesar de enfrentarem as mesmas pressões que os motoboys, eles dependem, exclusivamente, da sua força física, o que torna o trabalho ainda mais exaustivo. A pesquisa, de abordagem quantitativa, aplicou, presencialmente, questionários a 159 trabalhadores, usando o BAT (Burnout Assessment Tool), exclusivamente, para medir os níveis de burnout. As demais informações foram coletadas com o objetivo de traçar o perfil pessoal e profissional dos participantes.
Autonomia ou ilusão?
A chamada “economia de bicos” é caracterizada por serviços temporários e sem vínculo formal. Essa modalidade, comum entre entregadores por aplicativo, não atende aos critérios exigidos pela legislação trabalhista brasileira, como subordinação, continuidade e remuneração definida, e, por isso, escapa das garantias previstas para trabalhadores formais.
Este modelo de trabalho, cada vez mais presente nas cidades, expõe a informalidade e a ausência de direitos, camufladas pelo discurso da autonomia. “O trabalhador é chamado de autônomo, mas, na prática, é controlado por algoritmos que impõem metas, prazos e rotinas rígidas. A autonomia é ilusória”, afirma Ayara Bentes da Silva. Segundo ela, essa falsa sensação se dá porque os custos operacionais, como a bicicleta, a internet e até a mochila usada no trabalho, são responsabilidade do próprio trabalhador.
A falsa autonomia, imposta por plataformas digitais, tem como pano de fundo rotinas intensas e pouco reguladas. Na pesquisa, foram identificadas duas variáveis preditoras da síndrome de burnout entre os ciclistas entregadores: as horas de trabalho por dia e os acidentes durante o expediente, ou seja, quanto maior o tempo dedicado à atividade e maior a incidência de acidentes, mais vulnerável o trabalhador se torna ao estresse crônico.
“Burnout é uma síndrome que decorre não do indivíduo, mas, sim, do ambiente de trabalho. Reconhecida como um fenômeno ocupacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS), causada pelo estresse crônico em ambientes organizacionais que não foram gerenciados com sucesso. Mesmo sendo experienciado por indivíduos, burnout tem raízes e impactos coletivos: a ausência de um profissional aumenta a carga de trabalho sobre os demais, ampliando o risco de adoecimento coletivo”, afirma Ayara, ressaltando a dimensão sistêmica do fenômeno.
Ao aplicar o BAT, a pesquisadora identificou que 30% dos ciclistas entregadores apresentaram algum nível da síndrome de burnout, sendo que 17% desse grupo já estão no nível mais elevado. Ainda assim, muitos não percebem que estão adoecendo. Trata-se de uma categoria invisibilizada, que sofre com o estigma e a marginalização, mesmo estando em plena atividade nas ruas das cidades.
E, além de todos os agravantes já existentes, há uma sobreposição de vulnerabilidades vividas por esses trabalhadores no contexto amazônico: “Porque além de estarem às ordens da plataforma, há fatores estruturais que agravam a situação: ruas mal sinalizadas, condições climáticas extremas, infraestrutura urbana limitada. Tudo isso acentua os impactos sobre a saúde física e mental”, avalia a autora do estudo.
Quando o corpo e a mente entram em colapso
De acordo com o estudo, o termo burnout se refere ao nível devastador de estresse vivido por pessoas submetidas a condições intensas e mal gerenciadas de trabalho. No caso dos entregadores por aplicativo, a exposição contínua a jornadas extensas, as condições adversas da atividade e a ausência de suporte organizacional contribuem diretamente para o comprometimento da saúde física e mental desses profissionais.
A pesquisa revelou que os entregadores por aplicativo operam em um cenário marcado pela ausência de direitos básicos, como jornada de trabalho definida, descanso remunerado e acesso a férias, os quais podem exercer influência direta sobre o risco de desenvolvimento da síndrome. Para a autora do estudo, é fundamental que os resultados encontrados contribuam para o avanço de políticas públicas mais sensíveis à realidade desses trabalhadores, especialmente no contexto amazônico.
“Espero que esta pesquisa estimule novos estudos, especialmente na Região Norte. Também quero que os próprios entregadores se reconheçam nesse debate, se fortaleçam e se mobilizem em prol da formalização. Que tomem consciência de que são uma classe urbana em crescimento e passem a reivindicar seus direitos”, conclui.
Retrato da vulnerabilidade: os números da pesquisa
Os dados coletados ajudam a dimensionar esse cenário de vulnerabilidade:
- 63% dos entrevistados trabalham entre 5 e 8 horas por dia;
- 91% utilizam veículo próprio para realizar as entregas;
- 88% nunca receberam treinamento para exercer a função;
- 94% relataram não possuir local para descanso;
- Em relação aos equipamentos de trabalho, 96% utilizam mochila térmica, 94% dependem de internet e 93% de celular;
- 97% dos participantes afirmaram não ter recebido nenhum item da empresa.
No que se refere à saúde mental, os resultados também chamam atenção:
- 13% apresentaram risco de desenvolver a síndrome de burnout;
- 17% provavelmente já estão acometidos por ela;
Ou seja, 30% dos entrevistados apresentaram algum grau de comprometimento relacionado à síndrome.
Sobre a pesquisa: A dissertação Prevalência da síndrome de burnout entre entregadores ciclistas de aplicativo foi defendida por Ayara Letícia Bentes da Silva, em 2024, no Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGAD/ICSA), da Universidade Federal do Pará, sob orientação da professora Camila Carvalho Ramos. Esta pesquisa foi financiada pela Capes, por meio da concessão de bolsa de estudos durante o período de desenvolvimento do mestrado da autora.
Edição: Rosyane Rodrigues
Beira do Rio Ed.174 - Mar/Abr/Mai
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