Entrevista: “Está na hora de investigar o que as mulheres pensaram”
Yara Frateschi fala sobre filosofia e sexismo ao longo da História

Por Keila Gibson Foto Heloisa Torres
No mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, o Beira do Rio conversa com a pesquisadora e filósofa Yara Adario Frateschi, referência em estudos de visibilidade ao trabalho de mulheres que contribuíram e contribuem para o pensamento crítico e que também denunciam o sexismo e o racismo presentes no cânone masculino, branco e eurocentrado da historiografia.
Com diversas publicações em filosofia política, envolvendo temas como filosofia do sujeito; liberdade política e cultura democrática; emancipação da mulher; cidadania e liberdade; democracia, direito e poder comunicativo; participação social institucionalizada para a democratização da democracia, Yara Frateschi, em passagem pela UFPA, lançou em Belém o seu mais novo trabalho, a Enciclopédia Mulheres na Filosofia, publicado pela Editora Vozes. O livro é uma organização sua e das professoras Carolina Araújo (UFRJ) e Halina Leal (PUC-PR e FURBS), que tem o intuito de questionar a história da filosofia tradicional contada predominantemente a partir da perspectiva masculina.
Yara Adario Frateschi é professora livre-docente em Ética e Filosofia Política na Universidade Estadual de Campinas, onde atua com linhas de pesquisa em Ética, História da Filosofia; e Pensamento Ético-Político. Possui graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado em Filosofia pela USP e é autora dos livros A física da política: Hobbes contra Aristóteles (2008) e Liberdade, cidadania e ethos democrático: estudo anti-hobbesianos (2023).
Atualmente, a pesquisadora se empenha em recuperar trabalhos filosóficos de mulheres, com o objetivo central de ajudar a mudar os padrões da prática filosófica para que esta se torne mais inclusiva e diversificada, alterando a forma como se faz e se conta a história da filosofia.
1. Como a senhora descreveria o perfil da mulher do século XXI? Quais as diferenças (se há) em comparação às diversas concepções construídas ao longo da história da filosofia?
Yara Frateschi: Não creio que se possa falar de um perfil da mulher contemporânea porque em países capitalistas, multiculturais e de passado colonial e escravista, como é o caso do Brasil, as mulheres têm experiências de gênero distintas. Devemos resistir à ideia de que haja alguma coisa como “a mulher”: somos diversas na medida em que somos afetadas não apenas pelo gênero, mas também pelos marcadores sociais raça, etnia, classe, sexualidade e idade. As feministas negras nos ensinaram isso, nos ensinaram a ver que os marcadores sociais se interseccionam de maneiras diferentes produzindo experiências de sofrimento e violência - e também de agência e resistência – específicas. A militância e a obra teórica de Lélia Gonzalez, Zélia Amador de Deus e Sueli Carneiro, por exemplo, marcam profundamente o feminismo brasileiro nesse sentido, elas nos vacinaram contra o falso universalismo. Isso não significa, de modo algum, abandonar a perspectiva da luta conjunta, pois sabemos que as nossas demandas só serão atendidas se formos capazes de somar esforços buscando unidade estratégica de ação política: unidade na diferença. Quando efetivamente aprendermos isso, nada e ninguém vai conseguir deter a construção da equidade de gênero. Essa é a minha aposta e esperança.
2. Em sua pesquisa mais recente sobre Novas Narrativas, a senhora expressa a pretensão de contribuir para mudanças de padrões de prática na filosofia com a finalidade de que ela se torne mais inclusiva e diversa, mudando as maneiras de como se faz história da filosofia. Em que sentido a filosofia pode contribuir para a equidade de gênero e o respeito aos espaços e ao lugar de fala das mulheres de hoje?
Yara Frateschi: A história da filosofia foi contada por homens e o resultado é que o cânone filosófico é masculino de ponta a ponta. Na verdade, o cânone é masculino, branco e eurocentrado. Mas essa é uma história muito mal contada, pois os historiadores suprimiram as filósofas. Da Antiguidade grega, conhecemos Sócrates, Platão e Aristóteles, mas mal ouvimos falar de Cleobulina de Lindos, Aspásia de Mileto e Hipárquia de Maroneia. Quando o assunto é filosofia medieval, lembramos imediatamente de Santo Agostinho e Tomás de Aquino, enquanto permanece desconhecido o pensamento de Dhuoda, Murasaki Shikibu, Marguerite Porete e Christine de Pizan. Da modernidade conhecemos Descartes, Hobbes, Leibniz, Hume, por exemplo, mas o que sabemos sobre Elizabeth da Bohemia, Margareth Cavendish, Émilie du Chatelet e Mary Wollstonecraft? O mesmo acontece com a época contemporânea: o século XX foi prenhe de filósofas, não apenas na Europa e nos Estados Unidos, mas também na América do Sul e na África, por exemplo, mas elas foram quase que completamente apagadas. Quando recontamos a história da filosofia com a presença das filósofas descobrimos que aquilo que hoje chamamos de “questão de gênero” está em debate há muitos séculos e que as mulheres estão refletindo sobre os obstáculos que impedem a sua inserção na esfera pública também há muitos séculos. Você pode verificar isso no livro Enciclopédia Mulheres na Filosofia, recém publicado pela editora Vozes e organizado por mim, Carolina Araújo e Halina Leal. O livro nos dá uma perspectiva histórica da questão de gênero interessantíssima: com as filósofas de outros tempos aprendemos o que muda e o que permanece com o passar do tempo. E muitas violências de gênero permanecem recalcitrantes, continuando a nos afetar no século XXI. Basta ver, por exemplo, a composição de gênero das instâncias decisórias mais relevantes desse país. No Supremo Tribunal Federal, há onze ministros, dentre os quais apenas uma mulher. Na Câmara, as deputadas são apenas 18% e ainda há muito mais mulheres brancas do que negras e indígenas. Esses números revelam uma cultura profundamente sexista (e racista), atuante em todas as instâncias da sociedade, inclusive no ambiente de produção e transmissão do conhecimento e da ciência. Na área de filosofia, as mulheres são apenas 21,27% dos docentes permanentes em programas de pós-graduação, como mostrou Carolina Araújo no artigo A primavera de 2016 (2018). Nos verbetes da Enciclopédia Mulheres na Filosofia podemos ver que esse desequilíbrio e a cultura sexista que o fomenta sempre foram tema de denúncia e reflexão pelas filósofas.
3. Nesse sentido, a Enciclopédia Mulheres na Filosofia questiona a história da filosofia tal como tem sido contada com a pretensão de colocar em discussão o cânone masculino que ela ajudou a consagrar. Como a academia, de forma geral, enxerga a necessidade de a história ser recontada, há algum movimento nesse sentido que seja perceptível neste momento? Ou ainda estamos longe desse consenso?
Yara Frateschi: Não há consenso e ainda há muita resistência. Claro que há resistência: do outro lado há um sentimento de perda de poder decorrente da nossa contestação da hegemonia masculina. E sabemos como as pessoas com poder reagem quando se sentem ameaçadas. Contudo, podemos notar que há uma sensibilidade muito maior hoje em dia para a questão do apagamento das mulheres do cânone das diversas áreas, não apenas da filosofia. Hoje a revisão do cânone está em pauta em todo lugar: nas artes, nas ciências sociais, na economia, no próprio pensamento social brasileiro, etc. Não apenas no Brasil, mas em diversas partes do mundo. Inclusive nos grandes e mais destacados centros de pesquisa há um grande movimento liderado por mulheres buscando uma versão mais rigorosa e plural da história da filosofia e das outras áreas. Isso é maravilhoso, está começando a impactar a agenda de pesquisa, embora ainda haja bastante trabalho a ser feito. É muito bom notar que embora haja resistência masculina, há pesquisadores homens convencidos da necessidade desse trabalho, somando forças com a gente. O que precisa ficar claro é que nós não queremos suprimir ninguém da história, pois seria repetir o que foi feito com a gente. Quando reivindicamos cidadania filosófica para Mary Wollstonecraft não é para apagar a existência de Rousseau, por exemplo. Nada disso. O que nós queremos mostrar é que a história da filosofia ficará muito mais interessante, plural e complexa quando a contarmos com a presença das mulheres, que sempre existiram. Embora sejamos uma marcante minoria no passado e no presente, nunca estivemos ausentes. Está na hora de investigar o que as mulheres pensaram, a quais temas se dedicaram, com quais problemas se engajaram. É só isso, sem suprimir ninguém. O que já é muito.
Edição: Edmê Gomes Paixão
Beira do Rio Ed.173 - Dez/Jan/Fev 2024-2025
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