Mulheres e Meninas na Ciência
Sistema de Justiça Paraense: Desafios e avanços na inclusão de mulheres negras

Por Evelyn Ludovina Foto Alexandre de Moraes
A justiça, princípio fundamental que mantém a ordem social ao garantir os direitos em sua forma legal, muitas vezes pode acabar refletindo as desigualdades presentes na sociedade, as quais deveriam ser combatidas. De um modo geral, o Sistema de Justiça vai além das leis e dos processos judiciais, representando também as complexas relações de gênero, raça e classe que moldam a sociedade. Mas como essas relações influenciam e são influenciadas pelo universo jurídico? E quais são as particularidades enfrentadas pelas mulheres negras que ingressam em carreiras jurídicas, especialmente em um cenário amazônico?
Essas são algumas das questões centrais no artigo intitulado Uma Reflexão sobre os Marcadores Sociais da Diferença de Raça e Gênero na Composição do Sistema de Justiça Paraense, conduzido pela jovem pesquisadora Lívia Oliveira Rickmann, vinculada ao Instituto de Ciências Jurídicas (ICJ) da UFPA, e orientado pela professora Sandra Suely Moreira Martins Lurine Guimarães. O objetivo do estudo vai além da teoria: "Queremos entender como os marcadores de gênero, raça e classe moldam o Sistema de Justiça e, ao mesmo tempo, como esse próprio sistema contribui para a reprodução dessas desigualdades na sociedade", ressalta Lívia Oliveira Rickmann.
Para desenvolver a pesquisa, foram realizadas duas etapas metodológicas principais. A primeira fase teve base teórica, com uma revisão bibliográfica aprofundada das produções existentes no Brasil sobre temas como patriarcado, racismo, desenvolvimento do capitalismo no território e outros conceitos estruturais. Na segunda etapa, a pesquisadora conduziu entrevistas semiestruturadas com três mulheres negras que integram o Sistema de Justiça paraense, sendo elas, uma desembargadora, uma defensora pública e uma promotora.
A trajetória das mulheres negras no Sistema de Justiça
A escolha do tema não foi ao acaso. No curso de Direito é crescente a abertura entre estudantes e professores para abordar questões interseccionais. Neste sentido, a professora e orientadora Sandra Lurine teve um papel essencial nesse processo de pesquisa de Lívia. Além do ambiente acadêmico, a atuação no coletivo Mulheres Por Elas, que combate a pobreza menstrual em Belém, reforçou sua vontade de aliar teoria e prática.
"Acho que sempre tive este interesse em estudar um tema que nele eu também pudesse ver essa práxis, essa tentativa de fazer da pesquisa acadêmica uma pesquisa útil à sociedade e capaz de enriquecer discussões, propor soluções e, minimamente, combater desigualdades históricas no país", reflete Lívia, reafirmando o compromisso de transformar conhecimento em impacto social.
Durante as entrevistas realizadas para o artigo, a pesquisadora identificou diferenças geracionais e de experiências nas trajetórias das mulheres negras no Sistema de Justiça paraense, especialmente no enfrentamento ao racismo e ao machismo no ambiente jurídico. Segundo os relatos, nas últimas décadas, houve mudanças positivas tanto na mentalidade quanto nas políticas públicas. "Ainda que incipiente e insuficiente, a inserção de mulheres negras no Sistema de Justiça já apresenta avanços. As entrevistadas contaram que, no início de suas carreiras, enfrentaram dificuldades para se posicionar e serem respeitadas, mas, hoje, já percebem uma mudança de postura. A presença dessas mulheres nesses espaços causa uma grande transformação, permitindo que as próximas já encontrem um ambiente um pouco menos marcado pelo machismo e racismo", reflete Lívia.
Neste cenário, o norte do país possui particularidades históricas e estruturais que intensificam as desigualdades de gênero e raça no Sistema de Justiça. Se o Brasil, como um todo, já apresenta déficits em áreas como saúde, educação e transporte, no Norte essa realidade é ainda maior, o que impacta diretamente o Sistema de Justiça local, que reflete as desigualdades sociais e torna o acesso a oportunidades ainda mais restrito, especialmente para mulheres negras.
De acordo com a pesquisadora, para acelerar mudanças concretas no Sistema de Justiça paraense, é essencial adotar estratégias que vão além da inserção de pessoas negras nas universidades e nos cargos públicos. E, embora os avanços na representatividade sejam visíveis, ainda há um longo caminho para garantir a permanência e o sucesso dessas profissionais. "É fundamental pensar em políticas públicas que não apenas permitam o acesso, mas também assegurem a permanência, especialmente para estudantes negros que enfrentam dificuldades socioeconômicas durante a graduação", destaca.
No mesmo sentido, ela propõe, ainda, que o Sistema de Justiça tenha um olhar mais interseccional, adaptando suas rotinas e estruturas para acolher as realidades diversas, principalmente das mulheres negras. Medidas como a ampliação das políticas de cotas em concursos públicos e a criação de mecanismos que permitam maior flexibilidade na rotina de trabalho são passos importantes para construir um ambiente mais inclusivo e equitativo.
Sobre a pesquisa: A pesquisa intitulada Uma Reflexão sobre os Marcadores Sociais da Diferença de Raça e Gênero na Composição do Sistema de Justiça Paraense, conduzida por Lívia Oliveira Rickmann e orientada pela professora Sandra Suely Moreira Martins Lurine Guimarães, recebeu financiamento da Fapespa para sua realização. O estudo foi apresentado em 2024, trazendo uma análise crítica sobre as desigualdades de raça e gênero no Sistema de Justiça do Pará, especialmente em um cenário amazônico.
Sobre a pesquisadora: Lívia Oliveira Rickmann, de 20 anos, é estudante do 6º semestre de Direito na Universidade Federal do Pará (UFPA) e já demonstra uma trajetória marcada pelo compromisso com as questões sociais. Seu interesse acadêmico gira em torno de temas como raça, classe e gênero, sempre alinhados aos direitos humanos e ao viés do Direito Constitucional. Para o futuro, Lívia pretende ingressar em um mestrado, sem descartar a possibilidade de conciliar a vida acadêmica com a atuação no mercado de trabalho. Além da pesquisa, ela tem uma forte conexão com a arte, que considera uma fonte de força e inspiração para enfrentar os desafios da realidade social. Com uma visão coletiva sobre as transformações sociais, acredita que mudanças verdadeiras só acontecem por meio da união e da luta coletiva. Para ela, o Direito vai muito além dos paletós e tribunais — é um espaço de construção de justiça e de promoção de igualdade.
Edição: Edmê Gomes Paixão
Beira do Rio Ed.173 - Dez/Jan/Fev 2024-2025
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