Ir direto para menu de acessibilidade.

GTranslate

Portuguese English Spanish

Opções de acessibilidade

Início do conteúdo da página

Amazônia no centro da cena

Escrito por Beira do Rio | Publicado: Quinta, 11 de Março de 2021, 21h46 | Última atualização em Sexta, 12 de Março de 2021, 17h59 | Acessos: 1856

Teatro Cacuri propõe arquitetura que exalta a cultura ribeirinha

Autor propõe uma tipologia circular, que lembra uma arena; traz o público para o centro do espetáculo e, além disso, revela a atividade do corpo cenotécnico, quase sempre invisibilizado nos bastidores e nas coxias.
imagem sem descrição.

Por Jéssica Souza Fotos Reprodução

Uma estrutura para espetáculos teatrais inspirada em um instrumento de pesca amazônico. Se você nunca imaginou ser possível tal associação, o pesquisador Walter Chile, docente do curso Técnico em Cenografia da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará (ETDUFPA) e vencedor da sétima edição do Prêmio Professor Benedito Nunes (2020), vem lhe mostrar até aonde pode ir a ciência da Arte. A tese Traquitanas cênicas – saberes teatrais e artes de pesca: A decolonização do cenotécnico no Teatro Cacuri apresenta uma investigação teórica e empírica que tem por objetivo articular os saberes das artes de pesca do Norte do Brasil e do Centro-Sul de Portugal, com os Estudos Teatrais, particularmente no campo da cenografia e cenotécnica.

O estudo foi realizado no Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais das Universidades de Aveiro e Minho, Portugal, sob orientação da professora Maria Manuel Rocha Teixeira Baptista, do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, e coorientação da professora Wladilene de Sousa Lima, do Programa de Pós-Graduação em Artes, Instituto de Ciências da Arte da UFPA (PPGArtes/ICA). A pesquisa foi classificada em primeiro lugar pelo Prêmio Professor Benedito Nunes, que, a cada dois anos, reconhece teses nas áreas de Letras e Comunicação (ILC), de Ciências da Arte (ICA) e de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Instituição.

Como resultado, a pesquisa traz o projeto de um novo espaço dramatúrgico, no qual traquitanas cênicas (artefatos ou maquinários) da arquitetura teatral são elaboradas para visibilizar múltiplos sujeitos da cena. Por meio do uso de tecnologia de projeto e vídeo, o trabalho apresenta ainda a modulação de uma maquete, em 3D, do Teatro Cacuri, inspirado nas artes de pesca típicas da Amazônia, em que uma estrutura circular e uma reta são utilizadas de modo estratégico para capturar os peixes pelas forças das correntes de maré. A forma do cacuri foi associada pelo pesquisador às antigas especialidades dramáticas das arenas gregas e romanas, a fim de modelar um teatro próprio para a região.

Tipologia dá visibilidade aos saberes tradicionais 

Segundo Walter Chile, o objetivo da tese foi justamente propor uma tipologia própria para as artes cênicas na região amazônica. Além disso, o trabalho traz visibilidade para saberes historicamente silenciados por processos coloniais de dominação, que são os saberes tradicionais do povo ribeirinho, como pescadores, lavradores, seringueiros, mateiros, proeiros, calafates, puçangueiras, benzedeiras, rezadeiras, parteiras, entre outros.

“No caso específico do Teatro Cacuri, são os saberes da pesca artesanal e de re-existência praticados por homens e mulheres pobres da Região Norte do Brasil e das regiões Norte e Centro-Sul de Portugal”, declara. O pesquisador se autointitula ribeirinho proveniente das famílias que migraram do furo Maracapucu, nas ilhas de Abaetetuba, no Pará, e sente-se honrado em propor uma arquitetura teatral que valoriza e adapta-se à cultura da região.

Para a pesquisa, Walter realizou inúmeras entrevistas com pescadores tanto do interior do Pará como das vilas Franca de Xira e da Tavira, na região de Aveiro, em Portugal. Além disso, observou in loco o uso do artefato de pesca denominado cacuri estuarino: um curral de pesca formado por um cercado circular e um paredão em linha reta, assentado em praias, beiras de rios e igarapés, que intercepta a fauna aquática que transita a jusante e a montante nas correntes de maré. “E por que a pesca? Identificamos, em intenso trabalho de campo, que a pesca é uma atividade eminentemente orgânica, performativa, no âmbito da qual as artes de pesca encontram-se conectadas ao corpo pescante, tornando-se uma extensão tecnológica da prática, tal qual na arte da cenotécnica”, explica.

A ideia é que a formatação teatral proposta pela tese possa transportar, em múltiplas formas, os valores culturais, simbólicos, estéticos, afetivos, ambientais e sociais do contexto da pesca para um contexto artístico, contribuindo para a visibilidade da poética e dos saberes desenvolvidos por diferentes sujeitos sociais amazônicos e portugueses. “A pesquisa, portanto, garante visibilidade para saberes nativos historicamente colocados à margem do desenvolvimento e crescimento local”, avalia Walter Chile.

“As culturas hegemônicas, como as culturas grega, romana e inglesa, tiveram direito a uma tipologia de teatro para abrigar ou disparar o jogo cênico do seu tempo. As tipologias são os modelos arquitetônicos de teatro. E por que estudar esses modelos? Porque eles influenciam tanto na produção quanto na recepção do espetáculo e das artes cênicas como um todo. Se as culturas hegemônicas puderam ter uma tipologia teatral própria, compreendemos que as culturas não hegemônicas, como a amazônida, também têm esse direito. Afinal, em aproximadamente 13 mil anos da presença humana na Amazônia, até hoje, não houve quem propusesse nenhuma tipologia própria de Teatro para as artes cênicas da região que pudesse abrigar e disparar um jogo cênico próprio”, pondera o autor.

Culturas dominantes x processo de decolonização 

Para dar exemplo de algumas tipologias teatrais, há a italiana, que é a do modelo do Teatro da Paz; a experimental, que é o modelo do Teatro Waldemar Henrique; a de circo, entre tantas outras, que, de acordo com o pesquisador, são todas importadas. “As artes cênicas produzidas na Amazônia que vão para dentro dessas tipologias acabam reproduzindo as prerrogativas orquestradas por essas culturas dominantes”, explica Walter Chile.

O Teatro Cacuri vem, então, propor um desprendimento das matrizes coloniais e coloca à disposição um equipamento cênico para acolher e exaltar a cultura ribeirinha. “Não estou afirmando que a tipologia cacuri é a tipologia certa, mas, sim, uma proposta, uma alternativa nativa para que a comunidade amazônida possa dar mais uma passo no processo de decolonização da cultura amazônica”, afirma Chile.

A associação da forma do cacuri com as antigas espacialidades dramáticas, feitas por Walter Chile, resultou em um estilo de tipologia único: circular, que lembra uma arena, mas traz o público (fauna aquática) para dentro do espetáculo, este essencialmente performático, como o ato da pesca, representada pela atividade cenotécnica. “O Teatro Cacuri não invisibiliza o corpo cenotécnico, pois este participa tanto do processo de construção quanto da operação do espetáculo de forma revelada ao público, ao contrário das demais tipologias em uso hoje no continente europeu e americano do sul”. O cenotécnico, o profissional braçal da cena, nas tipologias tradicionais, fica clandestinizado nos bastidores e nas coxias.

Além do Prêmio Professor Benedito Nunes, a tese do Teatro Cacuri recebeu menção honrosa do Prêmio Internacional Virgínia Quaresma, de Portugal. As premiações destacam a originalidade do estudo e sua contribuição para as artes cênicas, humanas e culturais.

Expectativa: ver o Teatro Cacuri em toda a Amazônia

Pela ocasião da cerimônia de entrega do Prêmio Benedito Nunes, a orientadora da tese, a professora portuguesa Maria Manuel Baptista, afirmou que “como artista e criador, Chile soube traçar muito bem um caminho de pesquisa admirável e merecedor de destaque”. Para a coorientadora, a professora Wlad Lima, referência no teatro paraense, a importância da tese de Walter Chile está na sua complexidade cênica.

“Na totalidade do projeto, há muitas possibilidades de patentes. Além da própria arquitetura cênica, que é pura invenção, todas as traquitanas do teatro são únicas e originais. Elas inovam toda a realidade cênica do Brasil e trazem dispositivos decoloniais que criam uma ruptura na mentalidade eurocêntrica do teatro brasileiro. Com o Teatro Cacuri, saímos da exploração e colonialidade branca e estrangeira e entramos no universo caboclo e indígena, criando, pela primeira vez, um modo próprio de fazer teatro, comemora Wlad Lima.

A grande expectativa agora é que o Teatro Cacuri possa sair do papel e ganhar a Amazônia. “Essa criação precisa ser vista como um instrumento de formação e produção cênica posta à disposição da produção de conhecimento no campo das artes, bem como um modo de atuação ecológica/política integrada na realidade amazônica do século XXI”, opina Wlad. “Ver o Teatro Cacuri em pé, circulando por todos os campi da UFPA, é meu grande sonho como professora-pesquisadora e como uma artista do Teatro de Floresta”, complementa.

Saiba mais – Walter Chile foi iniciante de pesquisa do professor Camillo Vianna, ativista da vida e cultura amazônicas e ecologista mais proeminente da região. Depois, como seu pesquisador assistente, articulou os estudos ecológicos com o campo das artes. No mestrado em Artes, sob a orientação do professor Agenor Sarraf Pacheco, realizou os estudos dos tipos de dispositivos de captura de fauna aquática na pesca artesanal e de reexistência usados nos rios da Amazônia paraense, em particular, o Cacuri. Inspirado nesse tipo de armadilha de pesca, concebeu o Teatro Cacuri - primeira arquitetura teatral genuinamente amazônica. No doutorado, ampliando as zonas de pesca - Amazônia e Portugal –, Walter Chile concebeu as traquitanas de seu teatro inspiradas no pluriuniverso da pesca, tanto de mar quanto de rio.

Beira do Rio edição 158

Adicionar comentário

Todos os comentários estão sujeitos à aprovação prévia


Código de segurança
Atualizar

Fim do conteúdo da página