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Identidade e preconceito

Escrito por Beira do Rio | Publicado: Quinta, 16 de Agosto de 2018, 13h38 | Última atualização em Quinta, 16 de Agosto de 2018, 18h55 | Acessos: 6941

Dissertação analisa o processo de construção da autoestima negra

Da esquerda para a direita: Maria Carolina de Jesus, Maria Firmina dos Reis, Dandara e Chiquinha Gonzaga estão em cartazes fixados no Campus Guamá em campanha pela valorização da pessoa negra.
imagem sem descrição.

Por Armando Ribeiro Fotos reprodução Nayana Batista

“Eu nunca aceitava o meu cabelo. Até os vinte anos, eu não aceitei o meu cabelo. Na escola, durante a infância, era pior. Sofri vários tipos de preconceito e me tornei uma pessoa introspectiva, mas eu não enxergava isso como preconceito. Por quê? Porque eu não fui criada para ser vista como uma menina negra, uma mulher negra. Eu fui criada pra ser vista como uma menina morena”. Esse relato pertence à Carolina Maria de Jesus Hickmann (nome fictício escolhido pela entrevistada) e está na dissertação do psicólogo Robenilson Barreto, Contribuições psicanalíticas para a compreensão do preconceito social: um estudo de caso. A pesquisa teve por objetivo entender como acontece o processo de construção do preconceito racial e qual o seu impacto na vida de pessoas negras.

Robenilson Barreto conta que o trabalho, orientado pelos professores Paulo Roberto Ceccarelli e Zélia Amador de Deus, traz como proposta investigar em que medida o racismo influencia o cotidiano do aluno negro da UFPA. Segundo ele, as escolas e as universidades pouco abordam temas relacionados à história da África e de seus povos, restando aos estudantes aprenderem a versão contatada pelo colonizador. “Hoje, compreendemos por que diversas áreas de ensino não tocam nesse assunto. Falar de temas como raça, racismo ou África ainda é espinhoso, tendo em vista que a sociedade brasileira reconhece o racismo, mas não admite que é racista”, afirma Robenilson Barreto.

Para ser realizado, o estudo, apresentado ao Programa de Pós-Graduação de Psicologia (PPGP/IFCH), contou com o relato de dois estudantes da Universidade Federal do Pará, uma brasileira, a do relato acima, e um intercambista de Guiné Bissau, Clennon King Junior (nome fictício escolhido pelo aluno). “Esses estudos são essenciais, porque apontam a estrutura central do racismo, como ele é apreendido pelas pessoas e qual a consequência disso, além de explicar o motivo de, até hoje, existirem pessoas que se acham superiores a outras por conta da cor”, informa o pesquisador.

Considerando as realidades dos dois alunos, a pesquisa verifica que a forma como a brasileira sofre racismo é a mesma do guineense, mas em caminhos diferentes, e isso está ligado ao reconhecimento histórico de cada um. “Enquanto em Guiné Bissau as pessoas são estimuladas a conhecerem seu passado e se orgulharem dele; no Brasil, encontramos a negação da história do povo negro. Quase não ouvimos falar deles além da época da escravidão”, afirma o psicólogo.

O pesquisador lembra, ainda, das diversas políticas que estimularam o embranquecimento da raça. A própria ideia de “Ordem e Progresso” está ligada a essa evolução por meio da exclusão do negro. “Isso vai interferir diretamente no modo como o racismo é absorvido. A aluna brasileira apresentou um sofrimento mais profundo e um percurso mais longo até se admitir como negra, enquanto o aluno guineense enfrentou a situação de acordo com o orgulho que lhe foi ensinado. Então, conhecer e entender nossa história de luta e resistência é importante para termos orgulho da nossa origem, e isso é fundamental para a construção da subjetividade, para entendermos o que somos hoje”, afirma o psicólogo.

Metodologia usou ferramentas da psicanálise nas entrevistas

A pesquisa utilizou entrevistas semiestruturadas com perguntas-chave para guiar os entrevistados. Robenilson Barreto conta que as questões foram apoiadas na associação livre, associação flutuante e análise de transferência, termos da psicanálise que permitem aos sujeitos falarem livremente enquanto quem ouve toma notas baseado na escuta analítica. Essa metodologia serviu para demonstrar os impactos do preconceito racial na subjetividade dos entrevistados. O psicólogo revela que a pesquisa remonta um processo de identificação, mostrando que as pessoas se identificam com os elementos que lhes são mais próximos.

Com isso, Robenilson destaca outro resultado, que é o ideal de ego branco intensificado pela negação e inferiorização da história do sujeito negro. “As pessoas negras vão ter como referência a cultura branca europeia. Ideias como: as pessoas brancas são boas, estão nos melhores lugares e são bem-sucedidas. Assim, entendemos que expressões como ‘não sou tuas negas’, ‘a coisa tá preta’ ou ‘lista negra’ surgem nesse processo em que o negro é sempre uma expressão inferior. Ao nascer com essa perspectiva, é difícil se reconhecer com essa cor, porque ninguém quer se identificar com algo que remete a tudo de ruim”, explica.

Travessia da identidade: guineense, estrangeiro e negro

Em Guiné Bissau, o preconceito que prevalece é o étnico, sendo poucas as regiões em que ocorre a discriminação pela cor. O estudante Clennon King Junior pertence a um povo guerreiro, que expulsou os portugueses de suas terras. Ele foi criado com uma base de resistência, acreditando na história de luta contada pelo seu povo e sofrendo menos com o racismo do que a brasileira Carolina Maria de Jesus. “A travessia de identidade que ele faz resulta na descoberta do que é a inferiorização pela sua cor. Quando ele decide vir estudar no Brasil, ele é guineense. Quando entra no avião, ele é estrangeiro. Ao chegar aqui, ele se torna negro”, explica Robenilson Barreto.

Quando chegou ao Brasil, Clennon King Junior conta que ficou surpreso com a forma como o continente africano era retratado. Para ele, a história dos afrodescendentes e dos africanos é contada como se começasse na escravidão, negando todos os povos que existiram antes disso. As pessoas olham para o negro como um produto dos escravos, de uma raça inferior. “Infelizmente, os negros brasileiros, nossos irmãos, acabam, de certa forma, sendo vítimas dessa história. Porque você sendo negro e na sala de aula, a única coisa que falam sobre você é escravidão, humilhação e miséria. Isso não é bacana. Isso, de certa forma, não cria nenhuma autoestima”, afirma o estudante.

O pesquisador conta que Carolina Maria de Jesus Hickmann, por ser negra, mulher e lésbica, passou por um intenso sofrimento psíquico. Para ele, esse processo vai se atrelar com o histórico de negação do negro no Brasil, com o mito da democracia racial, que diz não existir brancos e negros no País, mas mestiços.

A aceitação de sua negritude, diz Carolina, começa aos 20 anos, quando entrou na Universidade. “Quando eu me vi em um contexto diferente, com novas ideias, foi que passei a reconhecer, dentro das minhas lembranças, o racismo. Isso, somado ao contato com os movimentos sociais, me fez parar de alisar o cabelo e me reconhecer como mulher negra. Hoje, luto, porque, durante toda a minha vida, fui jogada para escanteio e porque não sabia quem eu era. Hoje eu posso afirmar que tudo isso que me aconteceu me trouxe até aqui”, relata a estudante.

Ed.144 - Agosto e Setembro de 2018

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Contribuições psicanalíticas para a compreensão do preconceito social: um estudo de caso

Autor: Robenilson Barreto

Orientadores: Paulo Roberto Ceccarelli e Zélia Amador de Deus

Programa de Pós-Graduação de Psicologia (PPGP/IFCH)

Comentários  

+1 #2 Raimundo Rubens 09-09-2018 03:42
Parabéns ao psicólogo Robenilson Barreto, por seu belo trabalho e sua contribuição, e aos seus colaboradores!
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+2 #1 Raimundo Rubens 09-09-2018 03:40
Sempre me incomodem com o fato de o Dia da Consciência Negra ser um dia de lembrar da escravidão. Quando a cultura africana e afrobrasileiras são lembradas são como se fossem coisas de uma época há muito passada de um país muito distante. É como quando tua mãe te obriga a pedir desculpa ao coleguinha com quem tu brigaste e tu o fazes sem querer, por medo da mãe. É como se quisessem pedir desculpa aos negros por sentirem vergonha do que fizeram com eles no passado, mas não ter interesse algum em suas vidas, realidades atuais, problemas cotidianos, suas vitórias, suas conquistas. Na verdade, ainda não encontramos um jeito de nos redimir pelo que os nossos antepassados fizeram, e qualquer tentativa é menos do que a vontade de fazer a diferença hoje.
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