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Especial

Publicado: Terça, 31 de Março de 2020, 18h31 | Última atualização em Quarta, 15 de Abril de 2020, 15h16 | Acessos: 3509

Para ler, recordar e exercitar em tempos de COVID-19  

imagem sem descrição.

Por Jane Felipe Beltrão (1) - Especial para o Beira do Rio Ilustração: lettering Claudia Saldanha 

Em tempos de pandemia, a solidariedade deve ser a tônica. Assim sendo, eu que estou praticando o distanciamento social, decidi, como na época da Cólera, colaborar com o Hospital Universitário João de Barros Barreto (HUJBB) escrevendo sobre os comportamentos sociais (os quais nos foram ensinados) e sobre as mudanças em tempos de COVID-19. Procurei na memória e, aos poucos, resgatei histórias que nos acompanham pela vida e que podem explicar tais comportamentos.  

Escrevi o texto, que vem a seguir, pensando naquelas/es que, além de estarem sofrendo com a distância social, encontram-se hospitalizadas/os. Imaginei que, pelo sistema de som do hospital, as pessoas escutariam historinhas “de amor” bem- 
-sucedidas, contadas pelas avós, com voz aveludada como mel. 

Ao lerem o que escrevi, lembrem-se de que todas/os temos histórias para contar e, sempre, há alguém disposto a escutar. Vamos povoar nossas “vidas reclusas” com momentos de deleite pelas lembranças que podem trazer o perfume, a voz, as maneiras de ser de nossas/os parentas/es e amigas/os. 

Priorizei as mulheres ao escrever, pois elas, antes de nos abraçar, guardaram-nos no útero, lugar quentinho!  E, ao nascermos, elas nos abraçaram e, se não estivessem proibidas, estariam nos confortando, como sempre fizeram antes da pandemia. Visto que nem sempre nos lembramos desses fatos, eu as homenageio, afinal, quem conheceu histórias de avós e colo de mãe se sentirá acarinhado e enfrentará o tal cononavírus com esperança de que a mudança de comportamento nos brinde com um mundo melhor. Nós merecemos um mundo de paz! 

Abraços, beijinhos e carinhos sem ter fim (2) 

Depois que a tempestade instalada pela COVID-19 passar, nós poderemos cantar Chega de Saudade! Quanto mais paraenses se aquietarem em casa, mais cedo poderemos voltar ao cotidiano. 

Hoje, estamos longe e com saudades de nossos mais velhos: avós, avôs, mães, pais, tios, tias, amigas, amigos, vizinhas, vizinhos, mas elas e eles precisam desse exercício de solidariedade. Todo cuidado é pouco! 

Incentivo à solidariedade 

Os poetas escreveramvai minha tristeza, e eu acrescento: pede ao passarinho que leve um bilhetinho para a sua, a minha avó. Diz a ela que sem ela não podemos viver, mas um bichinho impertinente” chamado coronavírus impôs uma barreira social entre nós. Vejam: usei metáforas, o passarinho desta história pode ser procurado na internet e você faz uma letra bonita, caprichando na caligrafia, e escreve um, dois, três bilhetesAposto que sua avó ficará feliz. Repita a dose todas as vezes que a saudade apertar. Mande fotos. Ao fazer a selfie, cruze os braços no peito, como se abraçasse a avó. 

Diga à vovó que a distância deve ser pensada como se você estivesse viajando, e a viagem (...) é pra acabar com esse negócio (...)de viver longe dela. Informe que você passará duas, talvez quatro semanas ou mais um pouco até que tudo se resolva e se diga: - xô, xô, xô coronavírus! Se sua avó tem dificuldade de ler, grave o recado, ela vai amar! 

Gostou da ideia? Fale com as suas crianças para que elas mandem beijos e abraços às/aos mais velhas/os. Precisamos de muitas demonstrações de amor e de solidariedade. Cultive o apreço pelas pessoas, merecemos um mundo de amor, cordial e solidário. 

Eu gosto de escrever, nasci num tempo sem internet e costumava escrever cartas toda semana para pessoas amigas e para parentes. Ia aos Correios, postava as cartas e as pessoas, gentilmente, respondiam. Hoje, escrevo minhas cartinhas e meus bilhetinhos, pois acho gostoso e creio que eles expressam meu carinho pelas pessoas amigas. Depois de escrever, fotografo o bilhete ou a cartinha e envio de zap. Quem recebe reconhece a minha letra e se sente acarinhado. Há muitas formas de amenizar a distância. Seja inteligente, use da sua criatividade. 

Aprendizados do passado próximo 

Como sou contadora de história, prossigo a narrativa sobre os costumes sociais para que lembremos os afagos, os carinhos, os cafunés e outros agrados 

No Pará, e em muitos outros lugares do mundo, aprendemos muito cedo a nos acarinhar, damos beijinhos de um lado e de outro do rosto e, conforme se cresce e se torna adulto, passamos a dar um terceiro beijinho dizendo que “o terceiro é pra casar”. O casar é, na verdade, o desejo de que não falte carinho à pessoa. Somos poéticos e usamos metáforas – figuras, ideias para indicar o que queremos dizer. Pense comigo, casar é estar junto, portanto é uma forma de produzir expressões carinhosas, nas quais nem sempre prestamos a devida atenção.  

Os mais velhos nos ensinaram, também, a tomar a benção – expressão de respeito – e a benção exige dos que pedem e dos que recebem todo um cruzar de braços e apertos de mãos, as quais se levam aos lábios para selar com beijos. O ritual é lindo e, como fazia parte do cotidiano, nem sempre se prestava atenção. Hoje, a benção parece confinada aos templos religiosos, mas, antes, tomávamos benção de todas as pessoas mais velhas, mesmo daquelas que estávamos vendo pela primeira vez. A reverência era integrante das relações sociais. No momento, é algo em absoluto desuso. Que pena! 

Abraçar parentes, amigos e, sobretudo, crianças queridas faz parte da nossa vida. Algumas vezes, a saudade é tanta que quase quebramos os ossos de quem, há muito, não vemos. Pois estreitar e apertar entre os braços expressa apreço, delicadeza e amor. 

As avós, ao encontrarem as/os netinhas/os meio tristes, costumam fazer cafuné, coçar as costas para aliviar angústias e dores, colocam-nas/nos no colo, embalam-nas/nos na rede, em cadeiras de balanço, passeiam com elas/es embalando-as/os nos braços, sacudindo-as/os com carinho e desvelo. Tempos bons! Os quais nem sempre aproveitamos e agora haja saudade! 

Maneiras em tempos de COVID-19 

Leitores, tudo que aprendemos como formas respeitosas e de carinho hoje não pode ser usado, devemos evitar a proximidade umas/uns das/os outras/os. Apertos de mão, abraços, tapinha nas costas e tudo mais que faz parte da nossa rotina de afetos devem ser evitados. Mas atenção, a proximidade é proibida, mas outras expressões de afeto são necessárias. Invente, crie, temos que reagir de forma solidária em tempos de prevenção de COVID-19. 

Digo a vocês que o isolamento não afasta o coronavírus, ele apenas evita que os precários serviços de saúde – públicos e particulares – entrem em colapso e não possam nos atender. 

Encontre outras formas de dizer aos vizinhos e aos parentes que está por perto e atento, cuidando da saúde deles e da sua, afinal, nossa meta é não precisar de atendimento médico. Coloquem lenços brancos nas portas, nas janelas, use-os como bandeiras de paz, transmitam um pouco de otimismo 

Devemos refletir sobre a importância do Sistema Único de Saúde (SUS), afinal os que lutaram pela Reforma Sanitária e pelo atendimento universal abriram as veredas de atendimento indiscriminado. Vocês, os mais jovens, não viveram o tempo em que só tinham acesso a atendimento de saúde as pessoas que possuíam um vínculo empregatício. 

Vi se negar atendimento às/aos mais velhas/os. Avós e tias – sempre mulheres – que haviam se dedicado ao árduo trabalho de reprodução social, mantendo seus lares e cuidando de crianças, no fim da vidaeram tratadas como indigentes em hospitais mantidos por ações filantrópicas. Hoje, atendimento de saúde pública é direito. Percebem a diferença? Cobrar atendimento digno é direito, pagamos impostos e eles são altos, muito altos, sobretudo para as pessoas vulnerabilizadas por um sistema socialmente injusto. 

As lições de outras pandemias 

As pandemias são cruéis, varrem os continentes, levam milhares de pessoas, deixam as cidades desertas. Ao estudar as pandemias de cólera, descobri que, em 1817, os europeus conheceram a cólera e, de lá para cá, muitas pandemias assolaram o mundo. O flagelo produzido pela cólera era aterrador, pois as mortes produziram revoltas e rebeliões contra os governantes, acusados pelos insuficientes socorros públicos colocados à disposição dos acometidos pela doença. A moléstia acompanhou todas as rotas à época, militares e comerciais. A civilizada Europa deixava de ser imune ao “mal do Ganges. 

Qualquer semelhança com a COVID-19 não é mera coincidência, é parte do descaso de governantes que, sistematicamente, negam os direitos à saúde, impõem o sucateamento aos serviços de saúde e acreditam que tudo pode se resumir a uma gripe. 

Pensem comigo, não é só a COVID-19 que pode nos atingir. Lembrem-se de que,  todos os dias, temos outros problemas de saúde e de que os usuários do sistema de saúde não são atingidos apenas pelo coronavírus. Muitos são acometidos por acidente vascular cerebral, infarto, tuberculose, insuficiência renal e outras doenças, crônicas ou não, exigindo atendimento em saúde.  

Ao se aquietar em casa, resguardamos a vida de todos, coisa que o Estado não conseguiu prever e agora nos pensa histéricos – uma vez mais a suposta culpa é da vítima –, alarmistas e o que mais inventarem. O confronto e a apuração de responsabilidades, eu deixo para depois. Agora é ficar em casa. 

Ninguém merece 

O cerceamento das atividades rotineiras da população atingida pela cólera, no passado, ou pela COVID-19, hoje, deixa as pessoas aflitas, as ruas desertas e a sensação de impotência gera tristeza, às vezes desespero e, no mais das vezes, resta- 
-nos medo e pânico. 

Não se deixe abater pelo desânimo! Reaja, não importa de quem seja a responsabilidade pelo flagelo imposto pelo coronavírus. Fique em casa, proteja a si, aos seus e aos demais de serem acometidos pela doença. 

Chore ao ver a cidade deserta. Eu chorei ao ver a Cidade Universitária sem vida, sem o barulho, o trânsito e tudo o mais que faz o dia a dia de discentes, técnicas/os e docentes.  

O sacrifício nos foi imposto, mas ele há de passar. Ao nos ausentarmos, poderemos proceder outras medidas que nos resguardem dos problemas de hoje. Afinal, devemos preservar nossa capacidade de ser solidárias/os e de decidir nossos destinos. Agite a bandeira da liberdade e confie na nossa capacidade de oferecer resposta. Ficar em casa é resistir. 

(1) Antropóloga, historiadora, professora titular, docente permanente dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) e Direito (PPGD) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e docente colaboradora do Programa de Antropologia Social (PPGAS) da Universidade de Mato Grosso do Sul (UFMS). Bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) nível 1B. Autora do livro Cólera, o flagelo da Belém do Grão-Pará. E-mailjanebeltrao@gmail.com. 

(2) Cf. Jobim, Antonio Carlos & Moraes, Vinícius. Chega de Saudade. Disponível neste link.

A arte em lettering que ilustra este artigo foi feita, especialmente para o Jornal Beira do Rio, por Claudia Saldanha. Para conferir outros trabalhos da artista acesse sua conta no Instagram: @letrasdacacau 

Ed.153 - Fevereiro e Março de 2020

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