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Ensaio

Publicado: Sexta, 28 de Maio de 2021, 17h25 | Última atualização em Sexta, 28 de Maio de 2021, 17h25 | Acessos: 851

A cirurgia da tuberculose na Amazônia – ecos de um grito

Meus senhores,

o que pode e deve fazer a cirurgia

aliada da colaboração íntima com o tisiólogo,

no combate a essa terrível afecção, a tuberculose pulmonar,

cujo coeficiente de letalidade ensombrece as estatísticas demográficas

pelos países mais cultos do universo.

A cirurgia na tuberculose pulmonar

Jacy Carneiro Monteiro, professor de cirurgia (1937).

 Por Roger Normando Foto Acervo Pessoal

À parte do muito que já se escreveu sobre a tuberculose – desde o enveredamento pela poesia de Manoel Bandeira–, passando pela prosa de Thomas Mann e aos manifestos clínico e sociológico desse nascedouro da cirurgia pulmonar, peço vênia para descrever uma espécie de epílogo acerca do tema, ou melhor, pelo/para reavivar a antiga sombra nos ápices, descrita nos clássicos exames da abreugrafia.

Resgatar esse passado é desejar desempoeirar as imagens retidas na memória, o que vem a ser a recuperação de um elo perdido. Neste ponto, vale vincular o excerto acima – o de Carneiro Monteiro – a uma conjugação de vozes pendidas no abismo da história, em que se espelha o desejo de perenização. Rememorar tudo isso nos desenhos rupestres das paredes que formam nossa história passa a significar reacender as lamparinas do passado, quase apagadas nos dias de hoje. Recompor tal memória é incluir o imaginário, o lusco-fusco, o brumoso e o corisquento aos relampejos da estética que moldava o passado da “Tísica” e sua ação dentro do teatro operatório – como diziam os antigos sobre a sala de cirurgia.

Embora nós, médicos, saibamos o que geme, tosse e causa febre no avesso dessa infecção, acabamos por carregar uma doença repleta de uma composição plurifacetada, em que pese a linearidade quase infalível do tratamento clínico, afeiçoado de modo sutil e silencioso após a Segunda Grande Guerra, com a chegada Estreptomicina, o fiat lux da Tísica – conforme grafada no Corpus hippocraticum.

De Tutancâmon, que morrera de tuberculose, aos pneumotóraces (introdução de ar no tórax) do italiano Forlanini, há amontoados de ábacos a contabilizar os pulmões carcomidos pelo bacilo. É a infecção que mais matou ao longo da história. A partir de Forlanini, foram 63 anos insuflando ar nas pleuras para colapsar as cavernas e mitigar mortes, até se chegar à Estreptomicina de Waskman... E que não esqueçamos das toracoplastias avassaladoras, que deixavam os corpos deformando e a coluna encurvada!

Desde então, houve revezamento entre cirurgia e as medicações. E passamos a viver uma nova era, que, aos poucos, foi ganhando prumo para se chegar aos dias atuais. Ao longo dessa jornada, a cirurgia foi dando o braço a torcer e passou a reservar-se a um modesto horizonte de indicações, que, ao longo do ajustamento dos fármacos, foi minguando, a ponto de se riscar a legenda “sanatório” dos mapas das cidades.

Pelos meandros de gestão sanitária, chega-se ao Sanatório Barros Barreto (1959), hoje hospital universitário da UFPA-EBSERH. A história do hospital não difere de Messejana (CE) ou de Campos do Jordão (SP). Em 2006, a disciplina Cirurgia Torácica da UFPA fez uma espécie de revisitação à tuberculose. Recriou-se o “nascedouro” da tisiocirurgia para dar conteúdo mais acadêmico a essa via crucis da história da humanidade.

Reservou-se para estas linhas uma fagulha de ideia acerca do tratamento cirúrgico, agora com a lavra da mutação genética: a tuberculose multirresistente (TBMR). Ou seja, a “peste branca”, assim grafada por Thomas Mann (em A montanha mágica), deixa os cumes de Davos e vem abarrotar papers, para ganhar trama contemporânea e redimensionar a cirurgia torácica, agora, pelos ecos da cirurgia minimamente invasiva (VATS: videoassisted thoracic surgery). Equivale a dar sopro de vida ao personagem Hans Castorp.

Embora ainda no telescópio – ou estetoscópio – mental e narrativo dos pneumologistas, a doença ganhou potencialidade com a AIDS, dentro de uma realidade social negligenciada pelo poder público e pela própria sociedade, mas aberta a novas composições imunogenéticas de novas cepas.

Em 2006, pelo bairro do Guamá, já como “sanatório” abduzido e ressurgido como hospital-escola da UFPA, o serviço de tuberculose (Referência Secundária Estadual) estava sob a batuta de Ninarosa Cardoso, uma apaixonada pela tisiologia, em que o obstinado Fiuza de Melo a romantizou como Petit Fleur da tuberculose. Ali se traçou novo roteiro para reconstruir rotinas acerca das indicações cirúrgicas, aromatizadas pelos grânulos do passado e pela folhagem de um ipê-amarelo fincado ao pé da janela daquele ambulatório.

De uns tempos translúcidos para cá, o velho sanatório, por ter ouvido de tuberculoso, tem escutado, ali, uma espécie de ecos de um grito do passado ligado à cirurgia. Montou-se o Programa de Cirurgia da Tuberculose Multirresistente (TBMR), desde que os pacientes reunissem definições anatomofuncionais precisas e condições clínicas suficientes para suportar o fardo da operação – além da interpretação do mapa bacteriológico. Um time com três pneumologistas, enfermeiras, assistentes sociais e técnicos de enfermagem, além da equipe da disciplina de cirurgia torácica, para levar adiante o grito dos aflitos portadores de TBMR.

Dentre tantas e tantas escaladas por aquelas escadarias, cujo mármore empalidecido já se desfaz com o tempo, abandonam-se as abordagens cirúrgicas clássicas e chega-se ao andar da videocirurgia. Foi uma transcrição do passado de Tuffier a Freelander para se chegar ao novo de Roviaro, MacKenna e Gonzales-Rivas. Uma viagem atemporal germinativa.

Ao longo da jornada, o Programa de Cirurgia da TBMR acabou sendo aspirado por número relevante de pacientes XDR (Extensively Drug Resistent) resistentes a todas as drogas que existem, criando-se, assim, um subproduto da TBMR com comportamento imunogênico indolente, em que a ressecção cirúrgica passa a ser a última possibilidade de cura – a gota de esperança.

Aos poucos, apoiados na literatura e interpretando a geopolítica amazônica, começou-se a operar os primeiros casos, com resultados surpreendentes, além de muitas histórias sociais pesadas. Dos 23 casos, beirou-se 95% de cura; perdemos um caso. Muitas complicações, mas soubemos driblar todas, em que pese dificuldades inerentes à doença e ao sistema público do SUS.

O programa deu nova guinada, agora, com a introdução da VATS. O hospital sentiu-se com o tutano repleto de horizontes.

Foi agora em outubro de 2020, em meio à pandemia da Covid-19, que se deu a tal guinada. Convidamos a professora Paula Ugalde, do Institut universitaire de cardiologie et pneumologie, da Universidade de Laval, Quebec-Canadá, que passava uma temporada cirúrgica no Brasil. Ela sentiu-se provocada e desafiou o Departamento de Cirurgia à implantação do novo método. Ela fez check-in e embarcou com destino a Val-de-Cans; ajustou o cinto, afivelou o paraquedas e jogou-se, de corpo e alma, no programa.

Em dois dias, como se numa estirada só, quatro casos complexos. Um verdadeiro mutirão. Depois deu uma resfolegada e voltou para operar mais em janeiro e março de 2021. Foram todos casos XDR com escarro positivo. Ou seja, levaram-se para a sala de operação pacientes com potencial alto de transmissão em sua forma mais excruciante – resistentes a todos os medicamentos disponíveis na farmacopeia mundial. O resultado foi satisfatório, em que pese a lombalgia na equipe.

O desafio técnico maior está na fibrose viril das pleuras e a importante distorção anatômica do pedículo pulmonar, deixando a operação bastante arriscada, vez que vasos sanguíneos calibrosos e o próprio coração participam da dissecção através de uma fresta de 3 cm entre as costelas, por onde passam até quatro instrumentos. Por vezes, não se consegue separar as estruturas anatômicas e cada manobra precisa ser muito bem elaborada. Tem que ter músculo e joelho, paciência e perseverança, anatomia e anatomia. Caminhar um centímetro por via extra-anatômica pode ser mais lento que o trilhar de um molusco. O que seria isso, contudo, para alguém pertencente a um dos maiores centros de assistência torácica do mundo? Poderíamos finalizar assim: em nenhum caso houve sequer necessidade de transfusão sanguínea. Todos tiveram altas hospitalares livres do bacilo. O nosso HUJBB venceu mais esse desafio.

O evento foi testemunhado presencialmente por cerca de 12 cirurgiões brasileiros que pousaram em Val-de-Cans, aguçados em ver aquele desafio. Houve transmissão ao vivo, via internet, reservada a cirurgiões, residentes de cirurgia do Hospital Barros Barreto, assim como a alunos do último ano do curso de Medicina da UFPA. Do outro lado, o professor e cirurgião-pesquisador Alessandro Mariani, da USP, promoveu importante debate ao vivo e devolveu-nos alguns elogios, frente à empreitada inédita, com misto de organização e coragem.

Com este programa, foi possível transformar o hospital num verdadeiro oráculo da tuberculose cirúrgica moderna, cujo objetivo alcançado foi o de devassar a janela que se localizava no andar de cima da cirurgia torácica, aparentemente inalcançável a essa população sofrida.

Mesmo em meio a pegadas impressas sobre os cimentos das placas pleurais, a Tísica dá-se aos desafios, suturando os remendos da história e acrescentando novas ações. A tuberculose, por assim dizer, tem em sua nova agenda humanitária as formas multirresistentes, que ameaçam seriamente o ar que respiramos e agrava a pobreza de nossa Amazônia e também do mundo. Cabe-me, com esse mote, um arremate da escritora estadunidense Elizabeth Bishop, quando esteve por estas terras: “Um grito, o eco de um grito paira sobre aquela aldeia [...]. Ninguém ouve. O grito paira ali para sempre.”

À luz que alvorece, sob a árvore dos descaminhos, a tuberculose ressurge feito grão novo, ao lado de novas estações, no mesmo paralelo das silhuetas que deixaram as sombras do passado por algures, onde calçamos as sandálias da agonia e vestimos as roupas puídas pelo tempo. Mas sigamos a transformar o incógnito em apurado científico, ou seja, aprender que só há calmaria na crescente.

Roger Normando – Cirurgião torácico e professor da disciplina Cirurgia Torácica (Clínica Cirúrgica II). Departamento de Cirurgia/UFPA. E-mail: rogernormando@gmail.com

 Beira do Rio edição 158

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