Quando o trabalho adoece
Pará está no topo dos afastamentos por transtornos mentais na Região Norte

Por Evelyn Ludovina, Reportagem Especial | Ilustração: Freepik
Acordar cedo, vestir o uniforme, enfrentar ônibus lotado e passar horas em pé até chegar ao trabalho. Chegar já exausto e ainda lidar com tarefas que vão além do que foi contratado. Essa é a realidade de muitos brasileiros e brasileiras. O que deveria ser fonte de sustento e realização pessoal tem se tornado motivo de adoecimento. O trabalho, em vez de construir, tem cobrado um alto preço da saúde mental dos trabalhadores.
No Pará, o cenário é preocupante. Somos o estado da Região Norte com o maior número de afastamentos do trabalho por problemas psicológicos em 2024. Segundo dados do Ministério da Previdência Social, 5.441 pessoas se afastaram por questões relacionadas à saúde mental. Entre os principais motivos, estão os transtornos de ansiedade (2.262 casos) e depressão (1.268).
Fatores que agravam o adoecimento
A ansiedade é um estado em que o corpo reage como se estivesse diante de um perigo real, mesmo quando não há uma ameaça clara. Em cidades grandes como Belém, onde a maioria da população paraense está concentrada, fatores como infraestrutura precária, trânsito caótico e estresse urbano fazem com que muitos trabalhadores já iniciem o dia exaustos, o que compromete o bem-estar e favorece o desenvolvimento de doenças psicológicas.
De acordo com Thiago Costa, psicólogo do trabalho e professor da UFPA, o aumento do adoecimento e do afastamento do trabalhador é multifatorial. Ele aponta que, além do trânsito caótico, existem outras variáveis, como: carga de trabalho excessiva, metas inalcançáveis, falta de autonomia, ausência ou baixa qualidade das ferramentas para executar as tarefas, pouco reconhecimento e rotinas repetitivas. “O deslocamento pode estar diretamente vinculado à saúde mental do indivíduo. Em Belém, ele é difícil em várias instâncias: você já acorda sobressaltado porque deve pegar o ônibus em determinado horário. Quando chove, tudo fica mais complicado. A pessoa deveria chegar ao ambiente de trabalho descansado, mas já chega estressado e ansioso”, relata o psicólogo.
É assim que a ansiedade e a depressão impactam diretamente o bem-estar e o desempenho dos trabalhadores. “Quanto mais ansioso, mais dificuldade você tem de estabelecer, por exemplo, memória de curto e médio prazos. Um dos primeiros sintomas da ansiedade é a queda da capacidade cognitiva. Em ambientes que geram grande ansiedade, a pessoa pode perder até 30% da sua capacidade cognitiva. Nos tornamos mais irritadiço, não reagimos às brincadeiras, não nos comunicamos com a mesma precisão que conseguiríamos se estivéssemos equilibrados”, esclarece Thiago Costa. O professor reforça que os transtornos mentais mais recorrentes no ambiente profissional - ansiedade, depressão e estresse - e suas manifestações mais graves, como a síndrome do pânico e a síndrome de burnout, geram queda de produtividade e também afetam a equipe ao redor da pessoa adoecida.
O psicólogo faz outro alerta: muitos trabalhadores sequer reconhecem os sinais do adoecimento. E quando o diagnóstico chega, costuma vir acompanhado de culpa. Essa situação é ainda mais grave entre as mulheres, que lideram os afastamentos por transtornos mentais no país. A dupla jornada, o trabalho formal e as responsabilidades domésticas deixam pouco espaço para o autocuidado. “O trabalhador tem poucas condições de se perceber adoecido. Nós não vivemos numa sociedade que nos ensina a nos auto-observar. Não cabe ao trabalhador perceber que está doente, cabe à empresa na qual ele está inserido”, destaca Thiago Costa.
Impacto no mercado de trabalho
As consequências dos transtornos psicológicos, como ansiedade e depressão, vão além do sofrimento individual e impactam diretamente a economia, tanto para os trabalhadores quanto para as empresas. No caso dos funcionários, uma das primeiras perdas é a empregabilidade. No Brasil, o tempo médio de permanência em um posto de trabalho é inferior a seis meses, segundo dados da Economia do Trabalho. Essa instabilidade, conhecida como “turnover”, tende a se agravar em casos de adoecimento mental.
“O trabalhador acometido por uma doença mental tem esse processo agravado, criando-se uma espécie de ‘círculo’, que envolve o adoecimento, a perda do emprego e o agravamento do quadro mental”, explica José Trindade, professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (Icsa/UFPA) e coordenador do Observatório Paraense do Mercado de Trabalho (Opamet). Além disso, essas doenças podem impedir o avanço na carreira, afetando promoções e melhorias salariais, impactando não só a estabilidade financeira, como também os vínculos familiares e sociais.
Do ponto de vista das empresas, os prejuízos também são significativos. Trindade aponta três principais impactos: a queda na produtividade, com redução direta dos lucros; a perda de prazos e de mercado, comprometendo a competitividade; e o desgaste no clima organizacional, gerando conflitos que podem afetar as atividades da empresa.
O impacto se estende ainda ao sistema previdenciário. Com o aumento de afastamentos por saúde mental, crescem os casos de aposentadoria precoce, elevando os gastos públicos. “Um aumento nos casos de adoecimento mental, sobretudo entre trabalhadores jovens, pode gerar uma pressão financeira significativa sobre o fundo público”, afirma Trindade.
Investir em saúde mental nas empresas vai além do cuidado com o bem-estar: é também uma estratégia econômica. Iniciativas internas melhoram o clima organizacional, reduzem o “turnover”, aumentam a produtividade, a criatividade e a qualidade dos serviços. Para enfrentar essa realidade, são necessárias novas políticas públicas. Trindade propõe a criação de um plano nacional de saúde mental no trabalho que preveja: a atuação de psicólogos dentro das empresas, a redução de jornadas exaustivas, a criação de espaços de lazer e convivência e a reavaliação do padrão salarial, visto que isso impacta diretamente o equilíbrio emocional dos trabalhadores.
Cumprimento das leis trabalhistas
Muitos trabalhadores desconhecem seus direitos ou têm receio de buscá-los por medo de retaliação ou demissão. Esse silêncio pode agravar os quadros de adoecimento mental e criar um ciclo de sofrimento invisibilizado dentro das empresas.
No Brasil, os trabalhadores têm garantias legais quando precisam se afastar por questões de saúde mental. O principal documento exigido para dar entrada nesse processo é o laudo médico, que deve comprovar o diagnóstico e indicar a necessidade de afastamento do trabalho. Com esse documento, o colaborador pode acessar benefícios como o auxílio doença pelo INSS. Em casos de doenças relacionadas ao trabalho, é direito do trabalhador que a empresa emita a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), documento fundamental para o reconhecimento da ligação entre a atividade profissional e o adoecimento.
O papel das empresas diante de colaboradores que apresentam sinais recorrentes de transtornos psicológicos deve ir além do acolhimento pontual. Segundo o advogado trabalhista e professor da UFPA João Daniel Daibes Resque, há obrigações legais específicas que devem ser observadas e fiscalizadas: “Eu diria que existem três obrigações principais das empresas. A primeira é prevenir: construir um ambiente de trabalho saudável, especialmente para pessoas pertencentes a minorias ou a grupos vulnerabilizados. A segunda é realizar avaliações médicas ocupacionais, com exames admissionais, periódicos e demissionais. E a terceira, quando há doença psicossocial relacionada ao trabalho, é emitir a CAT, documento fundamental para que o trabalhador acione o INSS e garanta seus direitos”.
Com a atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), que entrará em vigor em maio de 2025, a legislação passa a reconhecer, oficialmente, os riscos psicossociais, como os assédios moral e sexual, como parte dos riscos ocupacionais. A nova NR-1 exige das empresas uma gestão mais integrada de riscos e saúde no trabalho, incluindo a participação ativa dos trabalhadores nesse processo.
Entre as mudanças, destacam-se: inclusão dos riscos psicossociais no planejamento da segurança do trabalho; exigência de abordagens mais detalhadas e abrangentes no gerenciamento de riscos ocupacionais e incentivo à participação dos trabalhadores nas estratégias de prevenção.
Para que os ambientes de trabalho se tornem mais saudáveis, é essencial avançar tanto na legislação quanto na cultura empresarial. Segundo João Daniel Resque, o Brasil ainda adota medidas pontuais, focadas em crises já instaladas, quando o ideal seria investir em políticas públicas preventivas, que considerem o fator epidemiológico da saúde mental. Embora o Estado brasileiro tenha reconhecido a saúde mental como um direito fundamental, essa atuação ainda é tímida. Um futuro mais saudável depende de empresas mais comprometidas, leis atualizadas e uma sociedade que trate a saúde mental como prioridade.
Edição: Rosyane Rodrigues
Beira do Rio Ed.174 - Mar/Abr/Mai
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