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Entrevista: “Ouvidos, mas não escutados”

Publicado: Terça, 13 de Dezembro de 2022, 17h54 | Última atualização em Quarta, 04 de Janeiro de 2023, 14h12 | Acessos: 2112

Políticas públicas ainda não consideram epistemologias indígenas

#ParaTodosVerem: Fotografia mostra um homem indígena sentado. Ele apoia o braço direito na janela e cruza o esquerdo a sua frente, segurando o próprio punho. Ele veste camisa de algodão na cor verde, usa relógio, anéis e pulseiras. Usa também um colar com grafismo indígena nas cores branca, preta e laranja. Sobre a sua cabeça, vemos um cocar. Em seu rosto, uma pintura corporal cobre os lábios, o queixo e parte da bochecha. Ele olha em nossa direção.
#ParaTodosVerem: Fotografia mostra um homem indígena sentado. Ele apoia o braço direito na janela e cruza o esquerdo a sua frente, segurando o próprio punho. Ele veste camisa de algodão na cor verde, usa relógio, anéis e pulseiras. Usa também um colar com grafismo indígena nas cores branca, preta e laranja. Sobre a sua cabeça, vemos um cocar. Em seu rosto, uma pintura corporal cobre os lábios, o queixo e parte da bochecha. Ele olha em nossa direção.

Por Walter Pinto Foto Alexandre de Moraes

Uwira Xakriabá ou William César Lopes Domingues, indígena da etnia Xakriabá, é doutor em Antropologia e um dos fundadores da Faculdade de Etnodiversidade da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Altamira, da qual é professor. Ao longo da sua vida acadêmica, ele vem se dedicando ao estudo dos saberes tradicionais, principalmente as epistemologias indígenas, ignoradas pelas políticas públicas de ensino e saúde. Orientado pela professora Jane Felipe Beltrão (Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA/IFCH), ele defendeu, este ano, a tese Entre o ouvido e o escutado: uma história da saúde indígena no Brasil, em que reafirma a necessidade de o saber ocidental reconhecer as epistemologias indígenas, superando um descompasso que prejudica não só o atendimento à saúde, mas também a educação indígena. Nesta entrevista, ele denuncia a falta de fiscalização e a permissividade em relação à atuação de madeireiros e garimpeiros ilegais nas terras indígenas. “Com a terra doente, o povo também adoece”, afirma.

Tese e problematização
Em minha tese, Entre o ouvido e o escutado: uma história da saúde indígena no Brasil, discuto a validade e a necessidade de reconhecimento das epistemologias indígenas na produção de saberes científicos que não os ocidentais. Ressalto o descompasso entre o que nós, indígenas, dissemos ser necessário para a criação do subsistema de atenção à saúde indígena e o que os nossos interlocutores ocidentais preferiram colocar em prática, resultando nas iniquidades que temos na atenção básica prestada hoje, como o colapso e a substituição dos sistemas tradicionais de saúde pelo sistema ocidental, que atua como agente do processo colonizatório ainda em curso no país.

Saúde indígena
A crise atual na saúde indígena vem ocorrendo em virtude do desmonte da política indigenista. O atendimento à saúde dos povos indígenas foi a única política indigenista não sucateada. Apesar disso, a extinção temporária do controle social e a proibição de atendimento fora das terras demarcadas afetam o nosso povo, penalizando duplamente aqueles que ainda não tiveram suas terras demarcadas por incompetência do Estado. Por outro lado, a falta de fiscalização e a permissividade em relação à atuação de madeireiros e garimpeiros ilegais nas terras indígenas causam agravos à saúde. Com a terra doente, o povo também adoece.

Municipalização
Desde a criação do SUS e a implantação do Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, a atenção básica à saúde de nosso povo é prestada pela esfera federal. O SUS não previu a atenção à saúde indígena e, seguindo o modelo de descentralização, o atendimento deveria ficar com os municípios. Nossa contrariedade se assenta no fato de que nos municípios estão nossos maiores inimigos: os latifundiários, que invadem nossas terras. Ao mesmo tempo, a assistência à saúde da população do campo e das florestas não é realizada, embora os municípios recebam recursos para isso. Consideramos, ainda, a baixa capacidade do SUS na maioria dos municípios menores, que são nossa referência e porta de entrada na média e alta complexidade de atendimento. No período em que a Fundação Nacional da Saúde (Funasa) era responsável por prestar esse atendimento, os convênios com prefeituras resultaram em desvios de finalidade dos recursos destinados à nossa saúde, o que nos levou a lutar pela criação de uma secretaria específica para nos atender dentro do Ministério da Saúde. Com a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), conseguimos resolver essa questão e melhorar o atendimento nas aldeias. Falar em municipalização é um retrocesso em relação ao que avançamos com a Sesai, que obviamente precisa melhorar.

Conflitos da educação
A educação escolar indígena precisa de formação continuada para os professores indígenas e respeito aos locais culturais que cada escola deve ocupar. Também é necessário que as universidades atinem para a possibilidade de aprender com o (re)conhecimento de nossas epistemologias, sobretudo no setor da saúde, para que nossos jovens não abandonem os conhecimentos tradicionais em prol da cientificidade ocidental, pretensamente única e absoluta. Não apenas os nossos jovens, mas também os jovens não indígenas precisam entender outras percepções sobre saúde/doença possíveis além das ocidentais. Não temos dúvidas de que é necessário os jovens receberem uma formação que atine com outras percepções sobre saúde, doenças, tratamentos.

Trajetória
Meu núcleo familiar se deslocou da divisa entre Bahia e Minas Gerais para Montes Claros (MG). De lá, meus pais foram trabalhar em Brasília, cidade onde nasci. Foi em Brasília que conheci os Asurini, do Xingu, em meados de 1990. Na época, fui convidado para passar um tempo em sua aldeia, atuando como técnico em enfermagem. Depois fui “adotado” por eles. Cursei Pedagogia no Campus da UFPA em Altamira, fui presidente do Conselho Sanitário Especial Indígena (Condisi) e membro fundador do Fórum de Presidentes deste conselho. Com parentes indígenas, quilombolas, povos tradicionais e professores da UFPA, criamos o Curso de Etnodesenvolvimento, no Campus de Altamira, no qual ingressei como professor por concurso público, em 2013. No ano seguinte, ingressei no curso de Mestrado em Antropologia e, posteriormente, no curso de doutorado, ambos no PPGA (IFCH/UFPA), em Belém. Na graduação, pesquisei sobre a escolarização da educação entre os Asurini; no mestrado, sobre os impactos da Usina Hidrelétrica de Belo Monte na nossa saúde e, no doutorado, sobre a saúde indígena.

Lugar de fala
A Antropologia é uma disciplina que fornece ferramentas de interpretação absolutamente imprescindíveis para quem se aplica a estudos culturais e possibilita a construção de entendimentos e explicações das situações vividas pelos povos indígenas brasileiros. Entre essas construções de conhecimentos baseados na interpretação das culturas, começam a emergir as vozes indígenas. Essas vozes são fruto não apenas da subjetividade individual indígena, mas também, acima de tudo, das epistemologias indígenas apagadas ao longo do processo colonizatório. É essa emergência das epistemologias indígenas, associada ao seu ineditismo, que privilegia nosso lugar de fala: partilhamos com os pesquisadores não indígenas as ferramentas da disciplina antropológica e com o nosso povo os signos culturais que nos fazem parentes indígenas. Nossa subjetividade como autores indígenas é marcada por nossa subjetividade individual e, acima de tudo, pela epistemologia que partilhamos em nossos grupos de pertencimento.

Estrutura e conclusões
A tese foi estruturada em tópicos que seguem o modelo de organização dos discursos ideológicos da oralidade indígena, dialogando com a linearidade dos discursos acadêmicos, a fim de torná-la inteligível a todos. Meta-história, mitos, relatos/testemunhos pessoais e documentos oficiais se mesclam com o meu próprio testemunho, como protagonista da história da organização da atenção à saúde dos povos indígenas no Brasil. Por fim, chego à conclusão de que a epistemologia ocidental ainda não atinou com nossas formas de fazer ciência e produzir conhecimentos. Por isso nossos doutores tradicionais não têm o reconhecimento das instituições científicas ocidentais e sucumbem a um processo de apagamento que submerge silenciosamente nossas epistemologias na epistemologia ocidental. Para nós, nenhum discurso pode ser aceito se não puder ser apropriado por todos, nenhuma palavra ou estudo é bom se não puder ser assumido por qualquer um e nenhuma história pode ser recontada e, assim, revivida se não partilhar sentidos que nos façam nos sentirmos um só. Em relação à saúde indígena, a conclusão é que a autonomia não está na garantia das leis ocidentais, e sim na existência e na agência de nossos sistemas tradicionais de saúde sobre o sistema ocidental, porque, quando foi constituído o subsistema de atenção à saúde dos povos indígenas, embora tenhamos sido ouvidos, não fomos escutados, o que faz com que esse subsistema encontre enormes dificuldades para funcionar.

Beira do Rio edição 165

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