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Resenha

Escrito por Beira do Rio | Publicado: Terça, 15 de Outubro de 2019, 14h57 | Última atualização em Terça, 15 de Outubro de 2019, 16h53 | Acessos: 4232

A gripe espanhola em Belém

Por Walter Pinto Foto Lucas Brito

No prefácio de O vírus e a cidade, a historiadora Maria de Nazaré Sarges adverte os leitores: “uma cidade tem inúmeros símbolos e histórias escondidas em papéis amarfanhados e corroídos pelas traças. Nem sempre as histórias que pululam desses papéis têm o odor de uma fragrância francesa ou a beleza de uma ópera italiana”. Faz todo o sentido a advertência da autora do clássico Belém: riqueza produzindo a belle époque, afinal o livro de José Maria de Castro Abreu Junior segue os rastros da gripe espanhola no cotidiano da cidade de Belém no ano de 1918, o subtítulo da obra.

São rastros que remetem o leitor ao ambiente insalubre das periferias de Belém, nas primeiras décadas do século passado. Um ambiente saturado pelo odor de vísceras expostas em bucharias fétidas, em que habitava numerosa população mal alimentada e de baixo poder aquisitivo, em casebres toscos erguidos sobre áreas alagadas.

Lugares como a vila Podrona ou o bairro do Ladrão revelam pelos próprios nomes os dissabores de seus moradores, tão próximos do centro e tão distantes dos benefícios das políticas públicas. Nessas zonas, sem higiene e saneamento, a gripe espanhola se fez mais intensa, entre setembro e dezembro de 1918, contradizendo o mito de doença “democrática”, que se propaga entre pobres e ricos, criado pela imprensa, mas não confirmado pelas fontes de José Maria Abreu.

Escrito por um médico com experiência historiográfica, O vírus e a cidade aborda uma temática sofrida, mas o faz por meio de um texto agradável. O autor tira do esquecimento o temor da população diante de uma doença para a qual o saber médico pouco podia. Se não houve corpos insepultos nas ruas, como na epidemia de cólera de 1855, conforme narrado pela antropóloga Jane Beltrão em Cólera: o flagelo de Belém do Grão Pará, a gripe hespanhola, como era grafado em 1918, obrigou os serviços funerários a trabalharem, diariamente, acima de suas capacidades. Diante da impotência da medicina no combate à doença, os jornais reportam o cotidiano do horror em meio à proliferação de anúncios que exaltam os poderes curativos de remédios sem eficácia comprovada e, em caso de falha, artigos de luto de fino acabamento.

Ao realizar a pesquisa para a tese de doutorado, o autor deparou-se com a ausência de relatos feitos pelos esculápios. Vindo do próprio meio, sustenta uma explicação: “a pandemia de 1918, pelo seu próprio caráter de terror, derrota o desfecho sem explicações, não parece um bom objeto a servir ao propósito laudatório das narrativas historiográficas feitas por médicos. Talvez, daí o descaso com a sua história, por muitas décadas”.

O autor, com base em ampla pesquisa bibliográfica, reconstrói os rastros da gripe no mundo, evidenciando seu caráter de pandemia. A origem da gripe de 1918, no entanto, é controversa. Pode ter começado pela China, mas os primeiros surtos divulgados teriam ocorrido nos Estados Unidos. Seu nome, porém, associa-se à Espanha, país que não mascarou o surto. Em menos de vinte meses, teria causado em torno de 50 milhões de mortes no mundo, quase sete vezes mais do que a Primeira Guerra Mundial. No Brasil, além dos milhares de mortos e doentes, ela também atingiu o diretor do Serviço de Saúde Pública da capital federal, o médico paraense Carlos Seidl, exonerado do cargo equivalente ao de ministro da Saúde, sob a acusação de morosidade no combate à doença (ver A História na Charge, na página ao lado).

Ao contrário da epidemia de cólera, que opôs alopatas a homeopatas, a hespanhola em Belém não gerou tensão entre saberes médicos e autoridades sanitárias, mas manteve no palco das disputas Igreja e Maçonaria, em busca de reconhecimento por mérito filantrópico, que a ajuda aos enfermos podia render. Temendo o contágio em ambiente de aglomeração, a Igreja suspendeu o arraial de Nazaré.

Iniciada em setembro, a doença evoluiu entre outubro e novembro, arrefecendo em dezembro, embora continuasse sua saga pelo interior paraense. Em Belém, a gripe pôs em evidência a falta de recursos da medicina para combatê-la. Entre as conclusões do estudo, José Maria Abreu formula tese original, ao inserir a fundação da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, inaugurada no mês seguinte ao fim da gripe, ao projeto, de algum modo, ligado aos desdobramentos da hespanhola no Pará.

Serviço: O vírus e a cidade: rastros da gripe Espanhola no cotidiano da cidade de Belém (1918). Autor: José Maria de Castro Abreu Junior. Editora Paka-tatu, 2018. 244 páginas.

Ed.151 - Outubro e Novembro de 2019

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