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O sábio da Travessa das Mercês

Publicado: Sexta, 17 de Fevereiro de 2017, 17h01 | Última atualização em Sexta, 17 de Fevereiro de 2017, 18h43 | Acessos: 4425

Memória: amigos e antigos alunos falam sobre o professor Jean Hébètte

Por Walter Pinto Ilustração Walter Pinto

Como um enclave urbano, a casa quase na esquina da Travessa das Mercês com Duque de Caxias mantém-se indiferente à especulação imobiliária que transforma os imóveis do lugar em pontos comerciais. Resiste como residência em meio a um agitado comércio formado por pequenas lojas de peças para eletrodomésticos, restaurantes desprovidos de luxo, botecos tidos por “pés sujos” e vendas de frango. A resistência por longos anos deveu-se à tenacidade de seu morador, um senhor alto, de cabelos brancos e óculos de lentes grossas, o qual os vizinhos comerciantes conheciam apenas por professor. Jean Hébètte, o morador, fazia da casa não somente uma residência, mas também uma extensão do local de trabalho em Belém, recebendo alunos, pesquisadores e trabalhadores rurais, a quem dedicou toda a sua vida como cientista social.

Acolher os que precisavam era uma das virtudes daquele cidadão belga, que chegou ao Brasil em 1967, na companhia de religiosos europeus dedicados à Teologia da Libertação. Jean Hébètte era missionário da ordem dos Oblatos de Maria Imaculada, ordenado padre aos 24 anos. Certamente, a vida religiosa muito contribuiu para a prática da solidariedade e do acolhimento, assim como foi decisiva para o posicionamento ao lado dos oprimidos, consubstanciado no trabalho científico que elegeu o pequeno camponês da Amazônia como objeto de pesquisa.

Acolhimento – Foi pelo acolhimento em sua pequena casa das Mercês que o engenheiro agrônomo e professor do Instituto de Ciências Agrárias da UFPA Gutemberg Armando Dinis Guerra começa seu depoimento sobre Hébètte, falecido em novembro passado, em Barvaux, Bélgica, para onde regressara após encerrar uma carreira de 46 anos como pesquisador da UFPA. Em 1986, à véspera de regressar a Belém, Gutemberg, que não tinha residência na cidade, foi interpelado por um colega que lhe ofereceu o contato de Hébètte. Se quisesse, poderia ficar na casa das Mercês. Garantiu-lhe que não seria nenhum incômodo para o dono da casa, que, por ser padre, estava acostumado a acolher, mesmo nos horários mais incômodos, como uma penitência que os religiosos dedicam a Deus. Naquele momento, Gutemberg aprendeu que o colega e o padre faziam parte de uma confraria que está desaparecendo, a da solidariedade.

A casa das Mercês é também uma referência para a cientista social e doutora em Antropologia Sônia Maria Simões Barbosa Magalhães Santos, que conheceu Jean Hébètte em 1988, por ocasião do 46º Congresso Internacional de Americanistas, florescendo, a partir daí, uma grande amizade, com quem partilhou muitas alegrias e conversas em Belém, em Ananindeua, em Paris, em Bruxelas, nos campos da Bélgica e da França, em Amsterdam, em São Luís, em Marabá e em Salvador. A casa se abria, Hébètte estava sempre interessado em discutir questões prementes do campesinato, ler os clássicos.

“Às vezes, lhe apresentava um ou outro autor e os discutíamos à exaustão e sempre havia uma discussão marcada lá na Travessa das Mercês. A janela aberta, a varanda livre, a porta fechada, a luz acesa. Assim era a sua casa, a casa de vida e de trabalho”, recorda Sônia Magalhães, que ressalta outra marca do amigo: reunir para refletir. Para ela, Jean foi um mestre que soube conciliar em suas reflexões o humanista e o crítico, a indignação e a compreensão, o compromisso com a pesquisa e a esperança da transformação, o sonho e a realidade do cotidiano, a teoria e a prática.

Engajamento intelectual e fé nos nativos

Ao chegar a Belém, vindo da primeira missão na África, Jean Hébètte já era doutor em Filosofia e Teologia. Segundo Gutemberg Guerra, a Ordem dos Oblatos viveu internamente um duro e reflexivo processo sobre a vocação. A partir daí, Hébètte buscou qualificar-se para o trabalho junto aos camponeses fazendo o curso de Economia na UFPA. Em 1973, concluiria o primeiro Curso de Especialização em Desenvolvimento Regional (Fipam/Naea). Era a base de que precisava para construir “uma profícua carreira de pesquisador sobre o processo de ocupação da Amazônia”.

De acordo com Gutemberg, Jean Hébètte “palmilhou a Belém-Brasília, a Transamazônica e as estradas que se abriam em Rondônia. Preocupou-se muito com o efeito dos grandes projetos sobre a vida camponesa, o que se tornou o principal foco de seus estudos e ação política”. Toda essa experiência foi decisiva para servir de ponto de apoio à formação de muitos pesquisadores da questão agrária na Amazônia, entre os quais, o próprio Gutemberg, que teve Jean Hébètte como seu orientador no mestrado e conselheiro no doutorado. “Ele formou gerações de pesquisadores, seja pela orientação formal nos mestrados e doutorados, seja pelo engajamento de bolsistas de Iniciação Científica,  seja pelas orientações voluntárias que realizava nas reuniões que promovia”, explica Gutemberg.

Para o sociólogo e jornalista Lúcio Flávio Pinto, Jean Hébètte foi uma presença marcante na história recente do Pará e da Amazônia. “Combinava condições raras, era atormentado e angustiado pela solidariedade com os mais pobres, desassistidos, explorados e colonizados”.  Na Amazônia, dedicou “sua espantosa energia e infindável fé aos nativos, aos excluídos do novo banquete colonial. Era um homem positivo: queria fazer – e fazia. Era um intelectual rigoroso, paciente na pesquisa, persistente na busca pela realização do objetivo. Queria trazer a realidade violenta da jungle para os ambientes acadêmicos e gritar para os privilegiados, os intelectuais, que eles precisavam também ser úteis, sem abdicar um milímetro de seu rigor científico”, lembra Lúcio.

Transformando ação em saber científico

Jean Hébètte legou à posteridade uma volumosa produção científica literária sobre o campesinato na Amazônia. Toda a sua obra foi calcada na experiência direta com a questão do campesinato. Era um cientista preocupado em transformar a realidade dos trabalhadores rurais, os explorados nas grandes propriedades, espoliados pelos grandes projetos, vítimas das políticas públicas elitistas. Assim buscou construir, com outros pesquisadores, entidades e instituições concretas, como o Centro Agroambiental do Tocantins, a Fundação Agrária do Tocantins-Araguaia e a Escola Familiar Agrícola, entre outras.

“Pesquisa e extensão, pesquisa-ação, valorização do conhecimento tradicional – que depois se tornaria moda e adentraria no jargão político e jurídico – era uma opção metodológica, ou melhor, epistemológica. Do mesmo modo, não se falava sobre jornada, não havia aritmética de produção. Pesquisávamos, discutíamos, escrevíamos – simples assim!”, afirma Sônia Magalhães.

Desta experiência indissociável entre ensino, pesquisa e extensão, resultou o conhecimento vertido para a literatura. Assim foram surgindo livros, como No mar, nos rios e na fronteira: faces do campesinato no Pará; Vivendo a terra ocupada; Políticas públicas e acesso à terra no estado do Pará: o desafio da criação de um campesinato autônomo na fronteira; Estudo sobre participação política em associações rurais na Amazônia Oriental; Transformações sociais no meio rural: estudos de caso no Norte e Nordeste brasileiros, o monumental Cruzando a fronteira, entre muitos outros títulos.

Para Sônia Magalhães, Jean Hébètte está por inteiro nos quatro volumes de Cruzando a Fronteira. “Este livro, para o qual tive a honra de escrever o prefácio, é a melhor forma de conhecê-lo. Comece por qualquer um dos volumes, não importa. Lá, você vai encontrar o mestre e as perguntas que quis responder. As respostas que deu não são definitivas, são, antes, respostas às questões de seu tempo e, sobretudo, caminho para seguir o seu maior legado – a busca para explicar e construir um mundo mais justo e mais solidário”, conclui.

Ed.135 - Fevereiro e Março de 2017

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